MERO DA SOMBRA DA PEDRA


Exemplar da espécie: mero

Thiago Fragata* 


Esse texto desvela uma lenda de São Cristóvão que registrei há alguns anos, nas pesquisas de campo. Coletar estórias do povo, assim nasceu o folclore em meados do século XIX, na Europa. Folclore é um neologismo, termo inventado pelo arqueólogo britânico Willian Jonh Thoms, para designar o conhecimento popular. No artigo publicado em 22 de agosto de 1846, folklore aparece como junção de folk (povo) e lore (sabedoria) para definir o conjunto de manifestações que simbolizam a cultura popular e, por conseguinte, refletem sua identidade. 
 
Na segunda metade do século XIX, intelectuais inspirados no romantismo inventaram narrativas embasadas no folclore para desvendar o passado. Severiano Cardoso e Manoel dos Passos de Oliveira Telles, por exemplo, foram intelectuais que, inspirados na sabedoria popular buscaram em São Cristóvão, antiga capital, respostas as suas pesquisas acerca da história de Sergipe. O rico patrimônio cultural da “cidade-mãe”, fundada no final do século XVI (1590) é prenhe de possibilidades encantou os pesquisadores. Vejo nos seus esforços uma espécie de “consulta ao oráculo de Delfos”, da Grécia antiga, as tantas escaramuças ou perquirições realizadas. O primeiro revelou Rita Cacete, o segundo conheceu pessoalmente João Bebe-Água; nenhum deles tratou da sombra da pedra... 
 
Na minha juventude em São Cristóvão, idos de 1985, aprendi a consertar “motores de rabeta” com o meu pai, o popular Tiago do Gelo, proprietário de barcos e redes. Uma queixa recorrente dos pescadores era a “sombra da pedra”, localizada próximo ao Porto das Pedreiras. Demorei decifrar esta enigmática expressão dita com agouro. Vamos a exegese: 
 
PEDRA - Hoje tenho uma imagem definida do rochedo, uma base brocada visível nos períodos de calmaria quando a água revela a silhueta de batismo. Uns falavam da sombra da pedra como sinônimo de prejuízo, porque a rede que se prendia em suas paredes de cascalho não se resgatava. Linhas e anzóis sem conta perderam-se e ornamentavam o rochedo há uns 10 metros de profundidade. Outros falavam daquele lugar como ponto piscoso. Razões para evitar a pesca nas proximidades da sombra da pedra todos tinham. O número de “mipas” (pescaria sem peixe) constituía-se um problema que definia a possibilidade de risco que um dono de rede poderia considerar. Independente de qualquer coisa, a pescaria farta seria certa aos que manejassem cautelosamente as armadilhas a sua volta. No entanto, alguém sempre lembrava de um fulano ou beltrano que sumiu na sombra da pedra, mergulhou e nunca emergiu... 
 
A SOMBRA - A sombra da pedra não era a única coisa que atemorizava os trabalhadores do mar, naquelas águas aparentemente residia um mero. Mil estórias ainda ecoam nos meus ouvidos sobre a fantástica criatura. O nome científico do bicho é Epinephelus Itajara. Itajara é um termo tupi que significa "senhor da pedra" (itá, pedra + iara, senhor). Esse animal marinho vive nos oceanos Atlântico e Pacífico. Entre suas características, destacam-se a longevidade - pode viver até 40 anos! - e sua capacidade de se camuflar no seu habitat: as pedras. 
 
Eureka! O peixe era a sombra! Dos causos contados pelos pescadores uma unanimidade, todos disseram que a sombra de um peixe gigante na superfície d’água, bem próximo a tal pedra, explicava a origem do nome. Após descrever o exemplar da megafauna marinha, um deles acrescentou: “E quando passou ao lado da canoa, deu para avistar ostras no seu costado, por pouco não virou meu barco.” Boa parte dos relatos sobre o mero exageram o seu tamanho e o caracteriza “velhaco” por duas razões: consegue escapulir de armadilhas, é um predador oportunista – surpreende suas vítimas. O serranídeo, animal da mesma família das garoupas e do badejo, pode atingir 2,7m de comprimento e pesar 450kg! 
 
Faz tempo, ninguém fala do gigante marinho que habitava a região onde o rio Paramopama deságua no Rio Vaza-barris, no povoado Pedreiras. Sumiu, ficou apenas o cenário. Será que alguém capturou o peixe velhaco ou ele encantou-se?”. Os que insistem na sua existência apresentam a maior prova: o lugar onde fica a sombra da pedra. 
 
*Thiago Fragata é professor, historiador e multiartista. Texto integra o inédito Cronicário das memórias – São Cristóvão/SE. Texto publicado no JORNAL DA CIDADE. Aracaju, ano LV, n, 15.414, 30/8 a 1/9/2025, p. 2.

UM JARDIM BOTÂNICO EM SÃO CRISTÓVÃO

No detalhe do mapa, centro, lemos JARDIM BOTTÂNICO e PRATA
 
 Thiago Fragata*

Qual o lugar exato onde funcionou o antigo Jardim Botânico de São Cristóvão? A questão partiu do saudoso amigo Professor Soutelo (1949/2022), durante uma visita de cortesia ao seu gabinete na Biblioteca Pública Epifhânio Doria, idos de 2004. Havia iniciado a produção acadêmica sobre São Cristóvão, como aluno de História, e demonstrava grande entusiasmo em pesquisar minha cidade natal quando firmei amizade com ele, Luiz Fernando Ribeiro Soutelo, intelectual de grande conhecimento acerca da História de Sergipe. Recordo que, na ocasião, o amigo abriu uma cópia ampliada do mapa de Pinxit Gonnet, de 1826. Então apontou seu indicador para expressão Jardim Bottanico, na área correspondente a capital da província. (1) Como já embalava a empáfia de topar desafios, falei na despedida que se o jardim botânico existiu com certeza localizaria. Nesse texto desvelarei o caso sherlockiano.

Quatro anos depois, 2008, encontrei o lugar onde funcionou o Jardim Botânico de São Cristóvão: Mata da Prata, no bairro Jardim, da Cidade Baixa. Verdade que a toponímia (nome do lugar) deu uma ajudinha. De visita ao meu pai, no bairro Avenida, realizei caminhada para o famoso banho na bica da pratinha, afim de rememorar tempo de menino. Então bati os olhos na placa RUA DO JARDIM, daí pensei “rua de acesso ao jardim”, lancei novo olhar por cima dos telhados e avistei palmeira imperial com palhas acenando na força do vento. Fui tomado por uma certeza inquebrantável, abandonei hipóteses. Tudo por conta desse alinhamento de informações.

A palmeira real vislumbrada naquela tarde, tinha uns 25 metros de altura, foi cortada tempo depois, um crime. Pouca gente sabe mais a espécie não é da região, nem mesmo desse país.  Ela pode atingir 50 metros de altura. Originária das Antilhas, é também conhecida como Palmeira Caribenha e Palmeira Real Sulamericana. D. João VI plantou, em 1809, a primeira palmeira trazida das Antilhas, no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Batizada com o nome de “Palma-Master" ela findou-se em 1972 (por conta de um raio), 163 anos depois! Atente a longevidade da espécie, ou seja, possivelmente aquela palmeira que “acenou pra mim” era do tempo do Jardim Botânico de São Cristóvão! Será?!

Não recordo como meu “achado” repercutiu na Secretaria Estadual do Meio Ambiente (SEMARH), que logo orientou manter caso em segredo. A Mata da Pratinha era de propriedade particular, daí que sua liberação visando um projeto de interesse público demandaria possível negociações sem o alarde do valor histórico. O Governador Marcelo Deda gostou da novidade e logo abraçou projeto que envolveu dois políticos de São Cristóvão, Wanderlê Dias Correia e Marcos Santana de Azevedo, ambos com passagem pela SEMARH. Os estudos técnicos do setor ficaram com Valdineide Santana, quem compartilhei toda a minha pesquisa.

O antigo Horto ou Jardim Botânico de São Cristóvão, capital da Provincial de Sergipe, foi um projeto do Governo Manuel Clemente Cavalcante de Albuquerque, inaugurado em 1824. Naquele contexto, a orientação emanada do governo imperial repetiu-se em Minas Gerais, São Paulo, Bahia e Pernambuco. Dotar as capitais dessas instituições era mais que equiparar-se ao Rio de Janeiro, capital do Império, em modernidade e requinte.  Havia também um interesse econômico estratégico de pesquisar e produzir espécies, especiarias, por exemplo. Imagine que Inglaterra dominava a produção e o comercio mundial de chás. Sim, o jardim Botânico de São Cristóvão, dedicou-se ao cultivo de ervas para chás. A informação depreendi dos recibos de pagamento de seus trabalhadores.

Essa política de fomento a criação de jardins botânicos na primeira metade do século XIX mascara um interesse econômico do Governo Imperial a medida que incentivava “a transplantação e aclimatação de espécies economicamente valiosas” (2) e prometia aos Presidentes de Província “prêmios e isenções fiscais para os introdutores e cultivadores de plantas de especiarias”. (3) O sigilo dessas experiências governistas ou talvez a brevidade do jardim botânico que outrora existiu em São Cristóvão, na então Província de Sergipe D’El Rey, talvez justifique as raríssimas informações compulsadas.

Na Europa do século XVIII, o caráter utilitarista da natureza havia sido exaltado pelos iluministas, especialmente os fisiocratas que reputavam a agricultura como sustentáculo da economia mercantil. Esse entendimento renovou a ciência e, de certa forma, reorientou as ambições do Estado português que tentou aclimatar e reproduzir especiarias nas colônias. Os trabalhos dos naturalistas Domingos Vandelli (1735-1816) e Manuel Arruda da Câmara (1766-1811) tematizam a criação de jardins botânicos, a transplantação de espécies exóticas e sua relação com as nativas, adaptação a terra, ao clima e a latitude. (4).

Infelizmente, o empreendimento do governo provincial sergipano não prosperou, muito pelo contrário. Ao final do segundo ano, duas tragédias inviabilizaram sua continuidade. Primeiro, uma grande cheia no rio Paramopama levou de enxurrada todas as plantações. Segundo, o Governador Manuel Clemente Cavalcante de Albuquerque, seu principal incentivador, faleceu, em 2 de novembro de 1826.

Por ironia ou coincidência, a morte do Governador Marcelo Deda, em 2 de dezembro de 2013, encerrou o projeto da retomada do antigo Jardim Botânico de São Cristóvão. Essa é minha avaliação. Eu havia abandonado as discussões do grupo de trabalho misto, que envolveu professores da Universidade Federal de Sergipe, quando decidiram que o novo jardim botânico de Sergipe não seria mais na Mata da Pratinha em razão das fatídicas cheias de inverno, mas nas imediações do rio Pitanga. Hoje, a Mata da Pratinha continua a servir a comunidade seja com seu manancial de águas límpidas, seja com uma natureza exuberante e aprazível. Ela esconde no solo, um patrimônio natural que remonta o Jardim Botânico além de ruinas de barragem e canalização de águas que serviu a antiga Fábrica Sam Christovam.

 

*Texto dedicado ao amigo LUIZ FERNANDO RIBEIRO SOUTELO (1949-2022) 

 


*Thiago Fragata é professor, historiador e multiartista. Texto integra o inédito Cronicário das memórias – São Cristóvão/SE. Publicado no JORNAL DA CIDADE. Aracaju, 19 de agosto de 2025, p. 2. E-MAIL thiagofragata@gmail.com

Fontes da pesquisa: 1 - PRADO, Ivo do. A Capitania de Sergipe e sua ouvidorias: memoria sobre questão de limites (Congresso de Bello Horizonte). Rio de Janeiro: Papelaria Brazil, 1919; 2 - PRESTES, Maria Elice Brzezinski. A investigação da natureza no Brasil colônia. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2000, p. 122; 3 - ALMEIDA citado por PRESTES, obra citada, p. 122; 4 - PRESTES, obra citada. O “Discurso sobre a utilidade da instituição de jardins botânicas nas principais provinciais do Brasil”, de Manuel Arruda, foi publicado em 1810.




UM EXTINTO QUARTEL MILITAR EM SÃO CRISTÓVÃO

 

Antigo Palácio Provincial servindo de quartel, 1930?

 Thiago Fragata*

 Clodomir Silva (1892 - 1932) publicou o incontorável Álbum de Sergipe (1920) num momento festivo do centenário da emancipação política de Sergipe da Bahia; também, Minha gente: costumes de Sergipe” (1926) focado no povo, nos costumes e marcas da sergipanidade. Nesse último, coletei a primeira pista de um quartel militar de São Cristóvão, extinto em fins do século XIX. Retirar do limbo o prédio é o esforço deste escriba. No texto “Por amor de Dona Úrsula”, Clodomir Silva destaca os rigores dos castigos implementados por um certo coronel contra seus subordinados, então refere-se à “rua do quartel”. (1) A toponímia tem dado um contributo importante aos pesquisadores diante da ruína de prédios (arquitetura) que cederam ao tempo e descuido dos seus proprietários. A mudança de nome de ruas, bairros e até cidades já ocorria no tempo do Brasil Imperial, na era republicana tornou-se recorrente. A tônica era batizar ruas com nome de pessoas, lideranças políticas, mesmo vivas. Em 1914, os vereadores de São Cristóvão cogitaram mudar nome das 3 praças principais (Carmo, Matriz e São Francisco) para Apulcro Mota, Pereira Lobo e Siqueira de Menezes! Consultei o absurdo no Arquivo da Prefeitura da cidade, isso nos idos de 2006. Foi nessa ocasião que recolhi outra valiosa informação: “A antiga rua do quartel, hoje faz parte da rua Coronel Erondino Prado”

Não tenho a data exata da fundação do referido quartel militar de São Cristóvão. Serafim Santiago aponta 1816. Expõe que neste ano foi construída “uma caza de pedra e cal, térrea com 10 braças de frente e outras tantas de fundo sitia no luar da Egreja do Senhor das Misericórdias (...) que serve de quartel”. (3) Sebrão Sobrinho informa que foi em 1818 que Antônio da Costa Mendes doou casa para instalação do quartel. (4)

A respeito da localização do prédio, avalizamos que tanto a capela do Senhor das Misericórdias como o Teatro,  igualmente extintos, eram vizinhos do quartel. Como endosso, vejamos o que diz Serafim sobre um passeio melancólico no centro da ex-capital em fins do século XIX, acompanhado por um velho amigo: na extinta rua das Candeias “pararam onde houve no tempo da Capital o começo do Theatro pertencente a Sociedade Philodramatica; alguns passos adiante pararam no local onde tinha sido o quartel militar (5) Ainda sobre a localização do quartel: Divide ao norte com terras  de São Francisco; ao Sul com terras do Senhor das Misericórdias; á Leste com terras do finado Manoel dos Santos Ritta e ao Oeste com a caza do finado Antônio Costa Ferreira (6) Em 1834 tomou posse Dr. Jose Joaquim Geminiano de Moraes Navarro, como Presidente da Provincia de Sergipe, o qual tratou de retificar o sobredito quartel militar dando-lhe melhor forma, commodidade e formoseamento”. (7)

O abandono a que foram relegados alguns prédios públicos após o advento da Mudança da Capital, em 17 de março de 1855, foi anotado por Serafim Santiago e Manoel dos Passos de Oliveira Teles. Foi o caso do citado quartel. Para Serafim Santiago muito se deu pelo “desleixo da Camara Municipal de São Christovão e negligencia de muitos dos meus patrícios (...) Os governos, daquela data em diante, não ligarão mais importância aos prédios ali existentes e pertencentes a Nação (...) os governos consentiram arruinar-se o Palácio [atual Museu Histórico de Sergipe] que outrora servia para residência dos Presidentes da Província (...) Este Palacio que serviu de aposento a S.M. o Imperador [D. Pedro II] (...) Eles consentiram arruinar-se o  Quartel Militar e finalmente, sem embargos de autoridade alguma, foi este edifício aos poucos demolido ainda em estado de conservação, em vez de um pequeno reparo”. (8) Sua demolição deu-se no início da década de 1890, aproximadamente.

Desprovida de Força Policial por conta do seu deslocamento para nova capital Aracaju, em 1855, a cidade sediou um Corpo de Linha em lugares diversos, sendo que em alguns anos o regimento foi destituído por decisão do Presidente, alegando contingenciamento e falta de efetivo. Alguns prédios do centro histórico que cumpriu o papel de sede militar por conta da presença de uma Força Militar, ainda que por pouco tempo, foram: o Sobrado da Câmara e Cadeia, localizado na Praça da Matriz; Antigo Palácio Provincial, atual Museu Histórico de Sergipe, localizado na Praça São Francisco. Manoel dos Passos de Oliveira Teles conta que a “maior adversidade foi o aquartelamento do segundo corpo policial de segurança no convento da Misericórdia” (9), em 1895, por imposição desmandos de coronel Manuel Prisciliano de Oliveira. A Misericórdia que ele fala é a Santa Casa de Misericórdia que também fica na Praça São Francisco e, atualmente, abriga a Prefeitura Municipal.

O tempo e o descaso do poder púbico figuram como vilões da salvaguarda dos monumentos. Uma política nacional de preservação do patrimônio cultural surgiria com a Superintendência do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN, depois IPHAN), autarquia federal, em 1937, e ainda assim, o diverso patrimônio cultural esboroa como o velho quartel de São Cristóvão. 

 

*Thiago Fragata é historiador, escritor e multiartista E-mail: thiagofragata@gmail.com

Texto publicado no JORNAL DA CIDADE. Aracaju, 9 a 11/8/2025, ano LV, n. 15399, p. 5.

 

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 1 - SILVA, Clodomir. Minha Gente: costumes de Sergipe. 3ª Ed. Aracaju: J. Andrade, 2003, p. 51; 2 - SOBRINHO, Sebrão. Laudas para História de Aracaju. 2ª. Ed. Aracaju: Gráfica J. Andrade, 2005, p. 358-359; 3 - SANTIAGO, Serafim. Annuario Christovense ou Cidade de São Christovão. São Cristóvão: Editora UFS, 2009, p. 76; 4 - SOBRINHO, Sebrão. Laudas para História de Aracaju. 2ª. Ed. Aracaju: Gráfica J. Andrade, 2005, p. 360-361; 5 – A Capela das Misericórdias e o referido teatro não existem mais existem SANTIAGO, Serafim. Obra citada, p. 115-116; 6 - SANTIAGO, Serafim. Obra citada, p. 76, 7 – idem; 8 - SANTIAGO, Serafim. Obra citada, p. 108; 9 - MECENAS, Ane; SANTOS, Magno; CARVALHO, Angélica de (org). Ao romper do século XX: o município de São Cristóvão por Manuel dos Passos de Oliveira Telles.  Aracaju: Criação, 2023, p. 122


OS AZULEJOS DE VESTA VIANA


 Thiago Fragata*

Mudei de São Cristóvão para Lagarto em julho de 2019, encerrando 30 anos de atividades na cena cultural da “Cidade-Mãe de Sergipe”, na qual estive envolvido em 3 áreas, basicamente: Educação, Cultura e Turismo. Recentemente, na visita costumeira aos meus pais, fiz um tour nostálgico pelo centro histórico, visitando igrejas e museus, e encerrei a agenda adentrando o prédio do Conselho Municipal de Saúde, localizada numa extremidade da Praça da Matriz. Fui reconhecido pela funcionária que, gentilmente, atendeu meu pedido inusitado: apreciar os azulejos pintados no banheiro. Ao fotografar as 6 obras, verifiquei que em apenas uma delas consta o nome da artista, Vesta Viana. Aposto que os leitores que conheceram de perto a artista e a sua obra nunca ouviram falar daqueles maltratados azulejos.

Quem foi Maria Vesta Viana? No catálogo 2 séculos de Artes Visuais em Sergipe (2008), ela figura como “artista Naif que despertou com sua arte o interesse de personalidades como Jorge Amado e Zélia Gattai”. O ilustre casal de escritores incentivou a carreira da jovem menina sancristovense que conheceram pintando num quintal da casa onde sua mãe Noêmia vendia doces, localizada na rua Santa Cecília, do centro histórico.  Resumo, em dois fatos, o que potencializou o sucesso e o alcance da arte da “artista primitivista”, conforme Jorge Amado publicaria numa edição especial de 1970 da Revista Manchete: Primeiro, o rumoroso sumiço (roubo) do quadro da artista da sala do escritor baiano. Na verdade, uma brincadeira do compadre Dorival Cayme, conforme noticiado pelos jornais cariocas. Segundo, o Festival de Arte de São Cristóvão (FASC), que teve a primeira edição em 1972. Essa edição do FASC elevou aos píncaros a obra da artista Vesta Viana que, tendo o seu nome já firmado na cena cultural, montou um ateliê. E, assim, por duas décadas (1970/1980), seus quadros tematizando casarios e igrejas coloniais, e também paisagens, atraíram uma clientela seleta de famosos marchands  estrangeiros.

Conheci Vesta Viana, salvo engano, em 1988, trabalhando numa repartição instalada naquele prédio. Era a Exatoria. Meu impulso para conhecê-la partiu de uma questão familiar: ela era madrinha do meu pai, o popular Tiago do Gelo. Não me contive com a descoberta, subi a ladeira e fui ao seu encontro. Firmada nossa amizade, fiz cerca de 5 entrevistas, publiquei alguns artigos sobre a sua vida e obra, assessorei algumas matérias para televisão. Ela compartilhou sua coleção de correspondências trocadas com o casal Jorge Amado e Zélia Gattai, bem como seus cadernos de poesias e documentos históricos – a exemplo do “Livro de orações contra a peste (Cólera), de 1856” – e as histórias do seu falecido pai Zeca Viana com dotes de cronista.

É corrente entre nós a obsessão barroca da eternizar as obras de arte, isso para compensar a brevidade da vida.  Sobre os azulejos, tenho algumas sugestões para a sua preservação. Sim, eles perdem pigmento com o passar dos anos, mas é fato que a situação se agravou porque alguém tentou raspá-los com palha de aço na intenção de “limpar” a tinta dos azulejos muito desbotados! Que triste...

Se, porventura, a Prefeitura Municipal de São Cristóvão aceitar sugestões, considero viável a remoção de sujidades e um banho de verniz fixador visando a sobrevida das obras. Posteriormente, o conjunto de azulejos poderia ser removido do banheiro do Conselho Municipal de Saúde, fixado num quadro e doado para algum museu, a Galeria de Artes Vesta Viana, por exemplo. Ou, então, depois da primeira intervenção, o prédio poderia figurar como um “lugar de memória de Vesta Viana”, um espaço para lembrar, (re)memorar ou (co)memorar a presença da grande artista sancristovense.

Maria Vesta Viana, além de artista plástica, era poetisa e pesquisadora da experiência histórica de sua amada cidade. Uma das últimas ações em que esteve envolvida como agente cultural foi na campanha da Praça São Francisco – tantas vezes representada em suas telas! – para receber o selo UNESCO de Patrimônio Mundial em 2010. Por tudo o que fez, pela divulgação do patrimônio cultural de São Cristóvão, seus azulejos merecem um olhar consciencioso. Alguém concorda?

 

*Thiago Fragata é historiador, escritor e multiartista E-mail: thiagofragata@gmail.com 

Texto publicado no JORNAL DA CIDADE, ARACAJU, de 23 de julho de 2025, p. 2. 

 

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

AMADO, Jorge. Salvador-Aracaju: roteiro saboroso para viajantes sem muita pressa. Revista Manchete (edição especial), São Paulo, outubro, 1970, p. 144.

CHOU, José Walter Teles et al. Dois Séculos de Artes Visuais em Sergipe. Aracaju: Sociedade Semear, 2008, p. 86.

 

 

VIOLÊNCIA DOS FOGOS DE RÉVEILLON CONTRA VULNERÁVEIS



 


Thiago Fragata*
 
Os chineses inventaram a pólvora e criaram espetáculos pirotécnicos, mas foram outros povos (mongóis, turcos, árabes, europeus) que usariam a pólvora como artigo bélico visando superar inimigos nas guerras. Assim, a guerra e a festa tiveram por séculos a pólvora como elemento indispensável. Em junho, na cidade de Shenzen, na China, imagens de um dragão colorido voando nos céus a executar perfeitas evoluções impressionaram o mundo, especialmente porque o seu corpo era formado por 1500 drones. A pirotecnia foi aperfeiçoada pela tecnologia digital. Apesar da repercussão midiática, o caso passou desapercebido em nossa sociedade pelo extrato governista que pudesse tirar alguma lição. A tal lição que refiro-me foi a de silenciar a pirotecnia, existe uma boa justificativa: esforço deve ser baseado no respeito aos vulneráveis (pessoa com deficiência, idosos, acamados, animais). Será possível?

A queima de fogos do Ano Novo aproxima-se. Prefeituras e Governo de Sergipe, com certeza, despenderam recursos públicos para garantir a beleza visual e o barulho (poluição sonora) em nome da tradição. A humanização avança nas ações do poder público em pautas de saúde pública e assistência social, prova disso é que ano passado, respaldado em legislação municipal, algumas capitais aderiram aos fogos silenciosos no show do réveillon. São elas: Macapá/AP, Campo Grande/MS, Goiânia/GO, Belo Horizonte/MG, Curitiba/PR, Porto Alegre/RS, Recife/PE, Fortaleza/CE, Palmas/TO, Florianópolis/SC e João Pessoa/PB. A pergunta é: quando Aracaju e Governo de Sergipe integrarão essa lista, respeitando autistas, hospitalizados, convalescentes e animais?

Sabemos que o espetáculo de réveillon faz parte de uma tradição. Como pai de criança autista com hipersensibilidade auditiva (Aurora, 7 anos - TEA) e cuidador de um cachorro sensível ao barulho dos fogos de artifício (Pingo, 9 anos), apelo aos direitos individuais e ao direito animal, invoco ainda minha especialização em História Cultural, pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), para afirmar: quando uma tradição da sociedade promove sofrimento, faça uma vítima apenas, deve passar por uma mudança em nome do bem estar da coletividade. Os direitos humanos estão acima da tradição no que tange a saúde e a proteção da vida.

Como não se discute direitos de minorias em regimes fascistas, creio que a pauta (substituir a queima de fogos barulhentos por fogos silenciosos) seja pertinente, haja vista vivermos numa sociedade democrática, ao menos no discurso. E, sobre gestão da coisa pública, os gastos com o espetáculo pirotécnico acontecem com dinheiro do contribuinte, não deveria acontecer para satisfazer apenas a uma parcela da população. Quanto a isso, gestão não pode ser confundida com eleição, ocasião que vence voto/vontade da maioria da população. Um governo que realiza um espetáculo de queima de fogos que diverte uns e promove sofrimento a outros é, no mínimo, irresponsável, sádico.

Por tudo o que foi aventado, a tradicional queima de fogos barulhentos do réveillon deve passar por mudanças. No dia 3 de outubro do corrente ano, a Comissão de Educação e Cultura do Senado aprovou o projeto de Lei (PL no 5/2022) que proíbe a fabricação, o armazenamento, a importação, a comercialização, a distribuição, o transporte e o uso de fogos de artifício e artefatos pirotécnicos que produzam estampidos, famosos fogos barulhentos. A agenda é que o projeto seja encaminhado para a Comissão de Constituição e Justiça, próximo ano, visando cuidar das pessoas sensíveis ao ruído e proteger os animais. Um detalhe pertinente: o veto não se aplica a fogos sem ruído, que produzem apenas efeitos visuais, também conhecido como fogos silenciosos. 
 
 


*Historiador, multiartista, cidadão.E-mail: thiagofragata@gmail.com
Texto publicado no JORNAL DO DIA. Aracaju, Aracaju, ano XIX, n. 5941, 30/12/2023 a 2/1/2024, p. 2


MERO DA SOMBRA DA PEDRA

Exemplar da espécie: mero Thiago Fragata*  Esse texto desvela uma lenda de São Cristóvão que registrei há alguns anos, nas pesquisas de c...