CORDELISTAS DE SÃO CRISTÓVÃO: O PATINHAS


O Patinhas vendendo seus cordéis. Foto: Thiago Fragata 2012

Thiago Fragata*
Ruma de meninos armou tucaia na entrada do Museu Histórico Sergipe; outro dia era uma freira ansiosa por fazer um doação de uma palmatoria, mas voltando aos garotos, justificaram o seguinte: a professora disse que o senhor sabe tudo etc e tal. Gargalhei. Disse: isso de novo! Esse povo acha que nasci com o que sei, tá enganado! Que sei tudo, tá engano dobrado. Qual a nova questão? Responderam: queremos saber se em São Cristóvão tem cordelista? Lembrei de O Patinhas


João Batista Araújo Santos, conhecido como O Patinhas, nasceu no povoado Cabrita, em São Cristóvão, no dia 24 de junho de 1955. Teve uma infância difícil, com muito esforço conseguiu concluir o ensino primário. Aos 23 anos foi residir em Salvador. Diz que o grande incentivo para abraçar o mundo da literatura e das artes plásticas veio dos amigos que fez no pátio da Faculdade de Belas Artes da Bahia, alguns professores reconheceram nele um talento nato.

Cordéis de O Patinhas. Foto: Thiago Fragata 2014
Quando o entrevistei em 2012, ele comercializa seus 14 cordéis. Listo:
1 - Lampião morreu em Sergipe
2 - Bahia de todos os santos
3 - O filho da mulher estrupada
4 - A ovelha perdida
5 - Ética profissional
6 - O valente João da Faca
7 - O Sacrifício
8 - A picada do mosquito da dengue
9 - As filhas da prostituta
10 - Arara e o caju
11 - O sonho do poeta
12 - Provérbio popular
13 - Operário Presidente
14 - Peleja de pato e galo

Não tive tempo para prolongar nossa entrevista, o que descobri depois veio da leitura parcial da sua obra: comprei os 10 primeiros títulos disponíveis. Ele produziu alguns trabalhos sob encomenda (Ética profissional, A picada do mosquito da dengue), outros, tematizou a sua própria vida ou buscou homenagear pessoas (Lula) e lugares (Bahia, Aracaju). Revela ainda um tino evangelizador (A Ovelha perdida), buscando na Bíblia e no cristianismo lições que possam orientar/ensinar para boa formação religiosa e cidadã.

Thiago Fragata - poeta e historiador. E-mail: thiagofragata@gmail.com

THIAGO FRAGATA LANÇA CD-ROM CRONOS ON LINE

CRONOS ON LINE FACILITARÁ PESQUISA

Na próxima sexta (5/12), o historiador Thiago Fragata lançará o CD-Rom CRONOS ON LINE. O catálogo digital da Campanha da Praça São Francisco, de São Cristóvão, a Patrimônio da Humanidade (2005/2010) reúne 206 matérias veiculadas na internet (formato PDF) e 4 anexos, sendo 3 vídeos e 1 áudio. O evento acontece na tarde de lançamentos realizada pelo Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGSE), em Aracaju, a partir das 17 horas. 
 
Fragata explica a importância do seu catálogo: "nos últimos anos, capturei matérias na internet sobre a campanha da Praça São Francisco e converti em PDF, por segurança, porque percebi a frequência com que essas notícias eram retiradas da rede mundial de computadores, o que deixava os pesquisadores no prejuízo; tanto que mais de 50% dessas matérias não se acham mais disponíveis. Diante desta carência que atingia a todos, num momento pós-reconhecimento que aliás aumentou o interesse das pesquisas sobre o patrimônio mundial sergipano, coloquei ordem cronológica na série de documentos guardados em meu arquivo, anexei vídeos produzidos pela Comissão Pró-candidatura e uma entrevista do saudoso Governador Marcelo Deda concedida no dia 2 de agosto de 2010, sobre a decisão da UNESCO em chancelar a praça localizada em São Cristóvão". 
 
Thiago Fragata compartilhará dados de pesquisa
 
Cronos on line constitui uma prova cabal do ciber-ativismo que envolveu a candidatura da Praça São Francisco e rende homenagens a quatro personalidades que contribuíram para o sucesso do patrimônio evidenciado: Marcelo Deda, Zezinho da Everest, Luiz Alberto e o cantor Rogério.

NO PRÓXIMO VAPOR - II*

Aurélia Dias Rollemberg (Dona Sinhá), déc. 1950
 



Samuel Barros de Medeiros e Albuquerque**

No domingo retrasado, voltamos ao longínquo século XIX e, na manhã de 10 de março de 1879, embarcamos com o Barão de Estância e seus acompanhantes rumo à capital do Império do Brasil. Eis, agora, uma questão: como foi possível reconstituir o percurso daquela viagem oitocentista entre Aracaju e o Rio de Janeiro?

A resposta não carece de rodeios. A reconstituição foi possível graças à sobrevivência de manuscritos e impressos produzidos no Brasil do século XIX ou legados por mulheres e homens que aqui viveram entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX.

E quais seriam esses documentos? O primeiro e mais importante é o texto de memórias de Aurélia Dias Rollemberg (1863-1952), nome de casada da filha mais velha do Barão da Estância com dona Lourença de Almeida Dias Mello.

Como havíamos registrado, as sinhazinhas Aurélia e Anna acompanharam seus pais na viagem de 1879. Décadas depois, no gabinete de leitura do memorável casarão da Rua Boquim, no centro de Aracaju, a viúva do senador Gonçalo de Faro Rollemberg (1860-1927) registrou suas reminiscências sobre o Rio oitocentista em uma pequena caderneta escolar. Esse documento, produzido entre 1927 e 1952, foi editado em 2005, na obra Memórias de Dona Sinhá, e o manuscrito original foi incorporado ao acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, através de doação feita pelos herdeiros do médico Lauro de Britto Porto (1911-2011). Assim, o texto de memórias de Aurélia sobreviveu e pode ser consultado em sua versão impressa ou manuscrita [1].

No Arquivo Público Estadual de Sergipe, localizamos os registros de saída de embarcações no porto do Aracaju relativos ao ano de 1879. Nesse sentido, o volume 21 do Fundo Segurança Pública registra a saída, em 10 de março, do vapor nacional Marquês de Caxias para o porto da Bahia [2]. Como havíamos mencionado no texto anterior, foi neste vapor da Companhia Baiana de Navegação que os viajantes sergipanos seguiram até Salvador, antes de tomarem o vapor estrangeiro que os conduziria até o Rio.

Por fim, a edição de 16 de março do jornal baiano “O Monitor” veiculou o seguinte registro: “[Ontem], no vapor allemão Valparaiso foram para Santos pelo Rio de Janeiro os seguintes [passageiros]: Manuel de M. e Souza sua senhora, 1 criada e 2 crianças, Barão da Estancia sua senhora, 2 filhas e 4 criados, Antonio da M[otta] Ribeiro e 4 criados, Chr. Retberg, Eleodoro J. de Campos, Dr. Pedro J. Pereira” [3].

Para além das fontes que nortearam, principalmente, a reconstituição do percurso, dialogamos com outros documentos [4] e estudos [5] sobre o Brasil oitocentista, que lançaram luzes sobre os cenários estudados. Exemplo disso são as cartas de preceptora alemã Ina von Binzer, que narram suas experiências enquanto preceptora de famílias fluminenses e paulistas em princípios da década de 1880. Esses documentos foram publicados na Europa em fins da década de 1880 e no Brasil, somente, em meados da década de 1950 [6]. Ina registrou com riqueza de detalhes, por exemplo, suas primeiras impressões sobre a região portuária e o centro do Rio de Janeiro oitocentista.

Longe de querer vomitar erudição em plena viagem marítima, considero tarefa básica no ofício do historiador indicar as fontes que dão vida às suas narrativas. Por mais que devamos primar por uma escrita historiográfica convidativa, julgo importante realçar a tênue linha que separa História e Literatura. (Continua)




* Publicado no JORNAL DA CIDADE. Aracaju, 16-17/11/2014, p. CA - 7. A fotografia que ilustra este artigo retrata Aurélia Dias Rollemberg (Dona Sinhá) em princípios da década de 1950 (Acervo particular de Ruth Rollemberg da Fonseca Mandarino).

**Professor da UFS e presidente do IHGSE. E-mail: samuel@ihgse.org.br
NOTAS
[1] A referência completa da versão impressa é: ROLLEMBERG, Aurélia Dias. O documento. In: ALBUQUERQUE, Samuel Barros de Medeiros. “Memórias de dona Sinhá”. Aracaju: Typografia Editorial, 2005. p. 47-123. Por sua vez, o documento original possui a seguinte referência: ROLLEMBERG, Aurélia Dias. [Texto de memórias]. Aracaju, [entre 1927 e 1952]. Acervo do IHGSE;
[2] REGISTROS de saída de embarcações no porto de Aracaju em 1879. Arquivo Público Estadual de Sergipe, Fundo SP8 - Inspetoria da Polícia (Marítima e Aérea), volume 21, p. 197 (reverso);
[3] NOTÍCIAS diversas. “O Monitor”, Bahia, 16 mar. 1879, p. 1.
[4] Em termos documentais, fiz uso de: AVÉ-LALLEMANT, Robert. Excursão à província de Sergipe. “Revista do IHGSE”, Aracaju, v. 21, n. 26, 1961; DIÁRIO do imperador D. Pedro II na sua visita a Sergipe em janeiro de 1860. “Revista do IHGSE”, Aracaju, n. 26, p. 64-78, [1965]; MACEDO, Joaquim Manoel de. “Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro”. Tomo Primeiro. Rio de Janeiro: Typ. Imparcial de J. M. Nunes Garcia, 1862; _____. “Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro”. Tomo Segundo. Rio de Janeiro: Typ. de Candido Augusto de Mello, 1863; SANTOS, Luiz Álvares dos. “Viagem Imperial á Provincia de Sergipe”. Bahia: Typographia do Diario, 1860; 
SCHRAMM, Adolphine. “Cartas de Maruim”. Aracaju: Núcleo de Cultura Alemã de Sergipe/UFS, 1991.
[5] Em termos bibliográficos, fiz uso de: ALMEIDA, Maria da Glória Santana de. “Sergipe: fundamentos de uma economia dependente”. Petrópolis: Vozes, 1984; _____. “Nordeste açucareiro”. Aracaju: UFS/SEPLAN/BANESE, 1993; CARVALHO, José Murilo de. “A construção da ordem & Teatro de sombras”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003; FIGUEIREDO, Cláudio; SANTOS, Núbia Melhem; e LENZI, Maria Izabel Ribeiro (Organizadores). “O porto e a cidade”. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005; FREYRE, Gilberto. “Modos de homem e modas de mulher”. Rio de Janeiro: Record, 1987; NUNES, Maria Thetis. “Sergipe Provincial II (1840/1889)”. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Aracaju: BANESE, 2006; PASSOS SUBRINHO, Josué Modesto dos. “História econômica de Sergipe (1850-1930)”. Aracaju: Programa Editorial da UFS, 1987; ROSADO, Rita de Cássia Santana de Carvalho. “O Porto de Salvador, modernização em projeto, 1854-1891”. Salvador: EdUFBA/CODEBA, 1983; SCHWARCZ, Lilia Moritz. Cultura. In: SILVA, Alberto da Costa e (Coordenação). “Crise colonial e independência: 1808-1830”. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011. (História do Brasil Nação: 1808-2010, 1).
[6] BINZER, Ina von. “Alegrias e tristezas de uma educadora alemã no Brasil”. São Paulo: Anhembi, 1956.

PROGRAMAÇÃO V CÍRCULO DOS OGÃS "MULHERES NEGRAS"

Cartaz. Autoria: Flavia Santana.
O Círculo dos Ogãs é um evento realizado na cidade de São Cristóvão pela Sociedade para O Avanço Humano e Desenvolvimento Ecosófico-SAHUDE na semana em que se comemora o Dia da Consciência Negra em todo país, 20 de Novembro, data em que morreu Zumbi dos Palmares. O evento ocorre há cinco anos com a parceria do Museu Histórico de Sergipe-MHS.

Esse ano, em sua quinta edição o Círculo dos Ogãs tem como tema de suas rodas as Mulheres Negras, é através dessa voz que mobilizaremos para os debates e conversas, jovens estudantes, professores, trabalhadores e principalmente as mulheres da cidade de São Cristóvão.

O evento já se tornou data cativa na comunidade, principalmente pelas instituições educacionais e culturais da cidade que celebram todo ano a mais expressiva data de luta em reconhecimento dos direitos do povo afrobrasileiro. Por seu significado o Círculo dos Ogãs foi em 2013 contemplado com o Prêmio Abdias Nascimento, conferido pela Assembleia Legislativa do Estado de Sergipe.O evento tem o apoio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN/SE), Secretaria de Estado da Cultura, Unegro e Universidade Federal de Sergipe (UFS).


PROGRAMAÇÃO

V CÍRCULO DOS OGÃS: Mulheres Negras (18 a 21/11/2014)


Dia 18/NOV
Local: Museu Histórico de Sergipe|São Cristóvão

19Hs MESA REDONDA "MULHERES NEGRAS NA SOCIEDADE ATUAL"

A Mulher Negra na sociedade brasileira: Quais os desafios?
Laila Thaíse Batista de Oliveira - Jornalista formada pela Universidade Tiradentes(UNIT), mestranda em Comunicação e Sociedade pela Universidade Federal de Sergipe. 


A Mulher Negra e a Conquista dos Espaços de Poder
Íris Fabiana - Formada em Turismo pela Faculdade de Sergipe, Graduanda em Letras/Espanhol na faculdade Pio X, Militante Política e Assessora de comunicação na Secretaria Especial de Politicas para as Mulheres de Sergipe (SEPM).

20Hs Abertura da Exposição Temporária “Mulheres Negras"

Dia 19/NOV
Local: Casa do IPHAN|São Cristóvão

14h MOSTRA DE VÍDEOS - Exibição de Curtas
“O corpo é meu” Fernanda Almeida (produtora)
Vencedores do Curta-História (MEC) 2014
Coordenação: Everlane Morais

Dia 20/NOV
Local: Praça São Francisco|São Cristóvão

15h Intervenção cultural: Dança Poesia e Percussão
- Espetáculo de Dança "Mandala" - Coreógrafo Ezequias Carvalho
- Intervenção poética "Microfone aberto contra o preconceito"
- Apresentação do Grupo de Capoeira "A hora é essa!", com os professores Rato Branco, Encabulado e Bahia.
- Show com MC MI e Convidados
- Apresentação do Grupo Ilê Axê - Mais Cultura "Gina Franco"

Dia 21/NOV
Local: Auditório da ADUFS – UFS

19h MESA REDONDA - “Mulheres de Axé: O arquétipo da Grande Mãe e a liderança feminina nos terreiros de Candomblé”
Martha Sales e Fernanda Cohim

OBS: Evento com direito a CERTIFICADO de 8 horas, presença 70% do evento.

Mais informações:

Marcia Arévalo (79) 8852-1838 – Presidente da SAHUDE

AS MEMÓRIAS DE JUNOT SILVEIRA – I*

Junot Silveira e Jenner Augusto entre amigos em São Cristóvão, anos 1930.


Thiago Fragata*

À Jenner Augusto (11/11/1924 – 02/03/2003)



Os relatos memorialísticos traçam grandes painéis da realidade. Estes retratos são obras de artistas e/ou historiadores, uns mais realistas, outros mais poéticos, cronistas do passado. Recentemente, recebemos duas excelentes produções biográficas, genealógicas, de marcante rigor historiográfico. A primeira foi “Memórias de famílias: o percurso de quatro fazendeiros”, de Ibarê Dantas; a segunda, “Trilhando Memórias”, de Ana Maria Fonseca Medina. Por demais resenhadas, devo apenas reputar o nível e o vigor do gênero literário em terras sergipanas. Nem sempre as memórias de um contexto historico-geográfico são enfeixadas em livro e chegam ao público leitor. Se o relato memorialístico que Serafim Santiago escreveu para os seus netos em 1920 ganhou o formato livro em 2009 foi graças aos esforços da Universidade Federal de Sergipe e do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, em razão do consenso destes centros de difusão do conhecimento. O Anuário Christovense traça um panorama geral dos fatos e práticas civis e religiosas de São Cristóvão na segunda metade do século XIX e início do XX, quando o autor comemora a chegada do progresso com a inauguração da Fábrica de Tecidos Sam Christovam em 1914. (1) No presente artigo revelarei a São Cristóvão na década de 1930 através das lembranças de um cronista, Junot José da Siveira (1923/2003). 
Junot Silveira era irmão de Jenner Augusto, destacado artista plástico, e teve uma marcante atuação no jornalismo baiano apesar de ter ensaiado seus primeiros voos em Sergipe, assim como o irmão. Foi editor do jornal A Tarde, de Salvador, Bahia, por mais de 40 anos (1958, meados da década de 1990). Na sua crônica registrou a nostalgia dos tempos de infância em São Cristóvão enquanto pauta do gênero literário que dominou magistralmente. “Num sentido, genérico, usa-se a palavra crônica para indicar, até hoje, o registro da feição de uma comunidade e de uma época, as memórias de um passado que se quer fixar”. (2) Apesar do dissenso quanto a classificação da crônica, se é paraliteratura, literatura ou história, tenho o cronista como um historiador dos costumes ou historiador do cotidiano.(3) 
Folheei 20 crônicas de Junot Silveira produzidas entre 1968 e 1994 e confesso minha admiração e descoberta do seu potencial memorialístico; “algumas de suas crônicas dominicais – conforme asseverou Mario Cabral – são antológicas”. (4) Da minha parte, não ousarei resenhar ou mesmo resumir seus escritos a respeito da sua encantada infância. Por isso deixarei seu texto “Ontem e Hoje”, publicado em 1988, substituir este elogio. Antes é importante frisar que os irmãos Jenner Augusto e Junot Silveira chegaram em São Cristóvão em 1930. Sua mãe, Maria Catarina Mendes da Silveira, professora, foi transferida para o Grupo Escolar Vigário Barroso, situado na atual Praça da Matriz. A residência simples em que moraram por 4 anos era no fundo da Igreja do Amparo dos Homens Pardos. (5) 
 ONTEM E HOJE - Vendo tantos carros manobrar no pátio do estacionamento eu me lembrei dos tempos de criança. Da época em que vivi em São Cristóvão com seus casarões coloniais, os seus conventos, os seus frades e suas beatas, as procissões desfilando pelas ruas, a velha fábrica de tecidos que funcionava na Cidade Baixa. 
 Era para essa fábrica que passavam, madrugada ainda, dezenas e dezenas de operários pela nossa porta. Eram homens e mulheres que acordavam cedo e calçavam tamancos, pisando em passos rápidos o chão de cimento das calçadas ou o barro das ruas. Acordavam cedinho, com o amanhecer, para se dirigirem ao trabalho, que não ficava perto da residência de todos. À época não havia transporte coletivo; o jeito era utilizar as pernas, caminhar muito mais de um quilômetro para lá e muito mais de um outro quilômetro para voltar. Iam limpos para o trabalho, limpos como a manhã que respiravam e quando retornavam estavam suarentos, com os corpos visgando e com vestígios de algodão. Traziam do serviço essa lembrança diariamente, e mais o cansaço de lidar com os teares. 
 Nas tardes de domingo tinham como lazer o futebol, o quadro da própria fábrica, o União Têxtil, se a memória não me trai, fazendo ótimas exibições frente a representação de outras cidades, inclusive Aracaju. No União Têxtil havia grandes valores, como Zeca Trincheira, um zagueiro pesado e forte e o hábil centroavante Zeca Tenisson. O Zeca Tenisson jogou futebol por mais de 25 anos seguidos, sempre com muita garra, muito empenho e muito brilhantismo. E também com muita discussão em campo, que não era homem para levar desaforo para casa. Por várias e várias vezes seguidas comandou a seleção sergipana que, se nem sempre teve melhor atuação, não foi por sua culpa. 
 O Zeca Tenisson jogou futebol durante tanto tempo, que eu devia ter uns cinco anos de idade quando ele já era craque do União Têxtil e, já adolescente, quando contava 17 anos, eu jogava ao seu lado em Laranjeiras e ele me transmitia alguns de seus truques e um pouco da sua experiência e da sua habilidade. Tivesse ele atuado em outros meios, em um centro como o Rio de Janeiro ou São Paulo, teria gozado de fama nacional. Fama justa, merecida e não fabricada como é comum acontecer hoje em dia. 
 O campo do União Têxtil, em São Cristóvão, era aberto; o da Associação Atlética, do Lagarto, colocava uma empanada nos dias de grandes eventos, o de Laranjeiras tinha uma cerca de bambus. No gramado dos três conheci bons atletas, mas nenhum deles se igualava ao Zeca Tenisson. Mas dele tenho também a lembrança de bom amigo que me levava, quando criança e ele adulto, a passear na São Cristóvão, inclusive nos dias de festas religiosas. Nos dias em que a cidade se enchia de visitantes. Nos dias em que chegavam os romeiros de várias partes, em caminhões, que então ainda não eram chamados de paus-de-arara. Ou em trens especiais. E as pessoas de maiores posses, altos comerciantes e senhores de engenho, que se transportavam de automóvel. 
 Esses automóveis eram, para mim, um deslumbramento. Nunca tive, sequer, um velocípede. O carro em que brincava era de madeira, das quatro rodas ao volante, feito por mim e os amigos. Daí o encantamento pelos veículos que chegavam de fora, especialmente de Aracaju. Pela manhã quase sempre ficavam postados na Praça de São Francisco e à tarde, lado a lado, na Praça da Matriz. Alguns motoristas, mais compreensivos e tolerantes, permitiam que eu sentasse no coxim, pegasse no volante, tocasse na alavanca do câmbio. Tudo isso eu fazia com o maior contentamento da vida. Com a mesma sofreguidão com que Thiago, sentado ao meu colo, mexe no painel do carro, acende e apaga as luzes do farol, vai-se familiarizando, precocemente, com a máquina que eu vejo manobrar no pátio do estacionamento e me traz lembranças de um passado que vai longe, mas sempre presente em minha vida sentimental. (6) Continua.

*Artigo publicado no JORNAL DA CIDADE. Aracaju, 12 de novembro de 2014, p. B-6.
** Thiago Fragata é Especialista em História Cultural (UFS), sócio do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGSE), diretor do Museu Histórico de Sergipe (MHS/SECULT), membro do GPCIR/CNPQ. Email: thiagofragata@gmail.com

NOTAS DA PESQUISA 
1 DANTAS, Ibaré. Memórias de família: o percurso de quatro fazendeiros. Aracaju: Criação, 2013; MEDINA, Ana Maria Fonseca. Trilhando memórias. Aracaju: Sercore, 2013; SANTIAGO, Serafim. Annuario Christovense ou cidade de São Christovão. São Cristóvão: Editora da UFS, 2009. 
2 BENDER, Flora et all. Crônica: história, teoria e prática. São Paulo: Editora Scipione, 1993, p. 14.
3 EWALD, Ariane P. et all. Crônicas folhetinescas: subjetividade, modernidade e circulação da notícia. In: NEVES, Lúcia Maria et. All. (org.) História e imprensa: representações culturais e práticas de poder. Rio de Janeiro: DP&A, FAPERJ, 2006, p. 242; BENDER, obra citada, p. 14-15. 
4 CABRAL, Mario. Jornal da Noite (críticas). Salvador: Editora Artes Gráficas, 1997, p. 307. 
5 PONTUAL, Roberto. Jenner e a Arte Moderna na Bahia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974, 41. Imagem foi retirada desta obra.
6 SILVEIRA, Junot. Ontem e Hoje. A Tarde. Salvador, 11 /9/1988.

Manoel D’Almeida Filho: 100 anos do maior cordelista de Sergipe*


Manoel D'Almeida Filho


Antônio Wanderley de M. Corrêa**

Manoel D’Almeida Filho nasceu em Alagoa Grande/PB em 13 de outubro de 1914, filho dos agricultores Josefa Pastora da Conceição e Manoel Joaquim D’Almeida. Somente aos oito anos, o pequeno Manoel conheceu a cidade. Provavelmente em um dia de feira, quando encantou-se com algum folheteiro, declamando ou cantando versos em meio a uma pequena multidão de curiosos e aficionados pelas novidades fantásticas da Literatura de Cordel.

Naquele momento, no início dos anos 1920, ao ter o primeiro contato com folhetos de Cordel, procurou alfabetizar-se com os mesmos. Aliás, os folhetos de Cordel vendidos nas feiras, mercados, praças e estações ferroviárias, foram por muitas décadas do século 20, as cartilhas de alfabetização autodidata de milhões de sertanejos nordestinos.

Já na adolescência, Manoel versava as histórias de Trancoso contadas por seu pai.

Em 1936, com 22 anos, trabalhando como operário em João Pessoa/PB, publicou o seu primeiro folheto inspirado em um caso polêmico ocorrido na época no interior do seu estado natal: “A Menina que Nasceu Pintada, com Unhas de Pontas e Sobrancelhas Raspadas”. [Vilma Mota Quintela. “Manoel D’Almeida Filho”. www.casaruibarbosa.gov.br/cordel].

O sucesso do primeiro poema animou o jovem Manoel que, resolveu dedicar-se inteiramente à poesia popular e ao ofício de editor e vendedor dos livretos de Cordel. Assim, passou a escrever febrilmente e a editar folhetos (imprimindo em papel barato em pequenas tipografias manuais) e vende-los em feiras do interior da Paraíba e de Pernambuco.

Como folheteiro ambulante, teve contato com violeiros e cantadores sertanejos, dos quais buscou inspiração para suas obras escritas e, por algum tempo, tornou-se também um deles. Mas foi como poeta de bancada que edificou sua monumental obra literária.

Naquelas andanças, conheceu em Recife/PE o grande editor João Martins de Athayde, que comprou os direitos de publicação da obra do ‘Pai do Cordel’ Leandro Gomes de Barros.

Em 1940, Manoel D’Almeida (com 26 anos) foi morar em Aracaju, fixando residência definitiva [Depoimento do próprio poeta gravado em vídeo em 1993, citado por Quintela].

Durante cinco décadas, vendeu folhetos de Cordel no Mercado Antônio Franco. Sua banca ficava na parte externa, no lado defronte ao Mercado Thales Ferraz. Na maior parte da sua longa estadia em Aracaju, residiu no Bairro 18 do Forte [Depoimento de Joelson Cabral a este autor em 09 set. 2014. Joelson é proprietário da Banca do Cordel “João Firmino Cabral” situada no Mercado Antônio Franco].

Nos anos 1950, tornou-se respeitado e famoso pela sua obra que crescia em quantidade e principalmente em qualidade. Pelo menos entre os cordelistas, editores e leitores daquele gênero literário. Sim, porque infelizmente a grande maioria dos poetas cordelistas são completamente desconhecidos ou desprezados pela chamada “grande mídia”, pela crítica literária e pelo grosso da população brasileira.

O ano de 1955 foi marcante para o nosso poeta. Ele começou a publicar as suas obras pela Editora Prelúdio de São Paulo, atual Luzeiro, que é a maior editora de folhetos de Cordel do Brasil. Além de autor, Manoel tornou-se selecionador e revisor de textos da editora paulistana até os anos 1990. Pela Prelúdio/Luzeiro, o cordelista de Alagoa Grande publicou cerca de 200 títulos. A maioria de romances de amor e sofrimento, romances de encantamento, aventuras sertanejas e histórias envolvendo o cangaço.

Ainda em 1955, junto com Rodolfo Coelho Cavalcante, organizou em Salvador/BA o Primeiro Congresso de Trovadores e Violeiros do Brasil.

Para o cordelista Marco Haurélio, Manoel D’Almeida “reivindicou para o cordel um espaço na literatura brasileira combatendo os estudiosos que viam no gênero apenas poesia parafolclórica” [Literatura de cordel: do sertão à sala de aula. Marco Haurélio. São Paulo: Paulus, 2013. p. 100].

Suas obras mais famosas são: Vicente o Rei dos Ladrões, Josafá e Marieta, A Luta de Zé do Caixão com o Diabo, A Briga de São Pedro com Jesus por Causa do Inverno, Rufino o Rei do Barulho, Padre Cícero o Santo do Juazeiro, Jesus Cristo e o Mestre dos Mestres, A Mulher que Enganou o Diabo, Os Três Conselhos da Sorte, Gabriela, Jesus e o Homem do Surrão Misterioso, A Troca das Esposas e Os Cabras de Lampião. Este último, considerado a sua obra prima, foi publicado em primeira edição em 1965, contendo 652 estrofes de seis versos. Na apresentação do folheto, a Editora Luzeiro afirma que “indubitavelmente, é a melhor biografia em versos sobre o famoso cangaceiro”.

Manoel D’Almeida é autor do mais longo poema em versos de Cordel já escrito: “O Direito de Nascer”, com 719 estrofes. Aliais, em número de versos, a sua obra é a mais extensa da poesia popular brasileira.

Foi fundador da Academia Brasileira de Literatura de Cordel, sendo o patrono da cadeira 20.

Na biografia do poeta no folheto “A Briga de São Pedro com Jesus ...”, a Luzeiro afirma sem arrodeio que ele é “considerado o maior poeta da literatura de cordel de todos os tempos”. E em todos os folhetos de sua autoria, aquela editora argumenta: “seu renome se deve, não à quantidade de suas obras, mas à qualidade, pois são sempre muito inspiradas e caracterizadas pela correção da linguagem (...) luta pela atualização e correção da literatura de cordel”. Afirma ainda que “(em Aracaju) exerce salutar influência sobre um grupo de bons poetas da região”.

Em sua “salutar influência” sobre jovens interessados em versarem poesia de Cordel, destacou-se um garoto itabaianense de 17 anos: João Firmino Cabral que, em medos dos anos 1950, lhe pedira para vender folhetos no interior. Manoel lhe entregou uma mala com 400 exemplares. O garoto Firmino foi para Itabaiana e outras cidades do agreste sergipano e vendeu tudo rapidamente. Dalí em diante, começava uma grande e duradoura amizade entre o já consagrado poeta paraibano e o garoto. Em uma de minhas conversas com este, o mesmo me falou emocionado: -Ele foi um mestre e um pai para mim! [Depoimento de João Firmino Cabral ao autor em meados de 2006]. Firmino tornar-se-ia seu discípulo mais devotado e, com o passar do tempo, outro grande nome, verdadeiro ícone do cordelismo sergipano.

Os fatos aqui expostos demonstram que Manoel D’Almeida Filho não foi somente um grande poeta, folheteiro, editor, selecionador de textos de editora e fazedor de discípulos. Foi também um militante e articulador. Lutou por quase toda a vida pelo reconhecimento da Literatura de Cordel por seus contemporâneos. Por este conjunto monumental, pela enorme qualidade criativa de sua obra, pelo seu poder de articulação e de arregimentação e a por sua luta deliberada e obstinada em colocar a Literatura de Cordel em destaque no cenário cultural brasileiro, o fizeram maior nome do cordelismo de Sergipe, quiçá do Brasil.

Durante a grave crise econômica do final dos anos 1980 e início dos anos 1990, quando a Luzeiro passava por momentos críticos, o velho poeta, com quase 80 anos de idade escreveu uma carta emocionada ao seu compadre e proprietário daquela editora Arlindo Pinto de Souza, receando o fim da Luzeiro e da própria Literatura de Cordel [Marco Haurélio. Breve Histórico da Literatura de Cordel. São Paulo: Claridade, 2010. p. 80]. Nascido em 1914, teve o seu centenário pouco comemorado.

Nosso cordelista maior faleceu em Aracaju de enfisema pulmonar no dia oito de junho de 1995. Segundo Marco Haurélio “seu desaparecimento (...), deixou uma lacuna impossível de ser preenchida”.

Meu otimismo inveterado e alguns fatos subsequentes me levam a pensar diferente. Manoel D’Almeida teve sucessor à altura. Com a morte dele, João Firmino Cabral agigantou-se com a sua obra também monumental. E hoje, assistimos com enorme satisfação o trabalho de aguerridos cordelistas, moços e outros não tão moços assim, produzindo em qualidade e em quantidade, divulgando o Cordel em eventos, nos meios de comunicação, nas redes sociais, nas escolas e em outros espaços. Bem como o revigoramento da Luzeiro e o surgimento de outras editoras especializadas no gênero, a exemplo da Tupynanquim de Fortaleza/CE e da Coqueiro de Recife/PE.

Como acontece por quase todo o Brasil, na terra adotiva de Manoel D’Almeida Filho, o Cordel vive um bom momento. E dias melhores virão. O trabalho desbravador de alguns poucos abnegados trouxe seus frutos.


* artigo publicado no JORNAL DA CIDADE. Aracaju, 8 de novembro de 2014.
** Licenciado em História pela UFS, professor das redes pública estadual (SEED) e municipal de Aracaju (Semed), coautor de livros didáticos regionais e cordelista.

No próximo vapor (I)*


Cais Pharoux, porto do Rio de Janeiro, fins do século XIX
Samuel Barros de Medeiros e Albuquerque**


Cais Pharoux, Rio de Janeiro, 18 de março de 1879. Do vapor alemão Valparaiso, desembarcava o deputado geral Antonio Dias Coelho e Mello (1822-1904), acompanhado de familiares, agregados e escravos domésticos. O político sergipano, conhecido, simplesmente, como Barão da Estância, voltava à capital do Império para tomar parte nas atividades da Câmara e estreitar relações na corte do imperador D. Pedro II.
 
A “comitiva” do barão não era miúda. Além da esposa Lourença de Almeida Dias Mello (1848-1890) e das filhas Aurélia e Anna, que contavam 15 e 11 anos, respectivamente, compunham-na os afilhados Antônio e Eponina Motta; a preceptora alemã Marie Lassius; e os escravos domésticos Senhorinha, Domingas e Joaquim. Todos, ainda que abatidos pela longa viagem, estavam tomados pela excitação de, finalmente, chegar ao Rio.
 
Naquela manhã de terça-feira, o grupo recém-chegado do norte encontrou a zona portuária, como sempre, bastante movimentada. Entre o Cais Pharoux e a Praça D. Pedro II, de onde seguiriam para o hotel, os viajantes capturaram as primeiras imagens, sons e cheiros da corte.
 
Diferente da pequenina Aracaju, o Rio era uma cidade cosmopolita. A variedade de feições, línguas, sotaques e comportamentos atordoava os visitantes. Pedintes sujos e maltrapilhos, escravos de ganho oferecendo seus produtos e serviços, senhores trajados à inglesa acompanhados de senhoras vestidas à francesa a caminho da Sé, o apito dos vapores, o badalar dos sinos, o estampido dos fogos de artifício, as vozes... Tudo se misturava naquele movimentado cenário da “colorida e ruidosa cidade tropical”.
 
O entorno da Praça D. Pedro II impressionava e o patriarca, ligado afetivamente àquela paisagem, indicava aos demais o Paço da Cidade; o antigo Convento do Carmo; a ermida do Senhor dos Passos; a Igreja do Carmo, que acumulava as funções de capela imperial e catedral; a Igreja da Ordem Terceira do Carmo; o Arco do Telles; o Chafariz no mestre Valentim...
 
Mas o deslumbre com o Rio, é preciso dizer, foi antecedido por uma longa e cansativa viagem iniciada oito dias antes, em uma distante província do norte do Império.
 
O calvário começou no Porto do Aracaju, na luminosa manhã de 10 de março, uma segunda-feira, quando o grupo partiu no vapor Marquês de Caxias, da Companhia Baiana de Navegação.
 
Deslizando para o sul, viram ficar para traz a cidadezinha cercada pelo imenso coqueiral que se espraiava por todo o estuário do Cotinguiba. A maré cheia facilitou a transposição da inconstante barra e deu acesso ao mar aberto. Os sopapos das ondas sobre a embarcação logo encheram de temor e enjoos as mulheres do grupo, que se refugiaram nos desconfortáveis camarotes a elas reservadas.
 
Ao cair da tarde, já estavam no Porto da Estância, no litoral sul de Sergipe, onde o vapor fazia escala. Sem que deixassem seus camarotes, perceberam a contínua redução dos sacolejos e concluíram que haviam saído do mar aberto. Navegando pelas águas mansas do Rio Piauí, alcançaram o porto mais sulino da província, onde permaneceram até o alvorecer do dia seguinte, quando retomaram a viagem.
 
Sob forte chuva, desembarcaram na tarde do dia 12 de março, uma quarta-feira, no caótico Porto da Bahia, onde eram aguardados por Cincinato Pinto da Silva (1835-1912), médico, escritor e político baiano, que há muito se tornara amigo do Barão da Estância e de sua família.
 
A “pausa de mil compassos” à espera do vapor que os conduziria à Corte foi compensada pela calorosa acolhida no palacete dos Pinto, localizado no charmoso bairro dos Barris, na Cidade Alta, em Salvador. Lá permaneceram até o fim da tarde de 14 de março, uma sexta-feira ensolarada e de ruas tomadas por homens e mulheres, quase todos pretos ou pardos, trajando alvíssimas vestes brancas.
 
Levados ao porto pelo doutor Cincinato, despediram-se do anfitrião e, sem demora, embarcaram no já mencionado vapor alemão Valparaiso, que, ao alvorecer do dia seguinte, partiria para o Porto de Santos, passando pelo Rio de Janeiro.
 
Entre a Baía de Todos dos Santos e a Baía de Guanabara, o “tempo frágil das horas” parecia se arrastar em quadras intermináveis. Inquietas, dona Lourença e, principalmente, a pequena Anna, obrigavam o barão a sacar do bolso o relógio e, insistentemente, conferir as horas.
 
Finalmente, o Rio. Depois de oito luas, muito chacoalho, enjoo e desconforto, o Rio. (Continua)



* Publicado no JORNAL DA CIDADE. Aracaju, 2 e 3 de novembro de 2014 (caderno A, página 7). Este artigo é um desdobramento do trabalho “No próximo vapor: uma viagem entre Aracaju e o Rio de Janeiro no século XIX”, apresentado no Encontro Regional de História da ANPUH-Rio, em 1º de agosto de 2014. A imagem que o ilustra, preservada no acervo Biblioteca Pública do Estado do Rio de Janeiro, retrata o Cais Pharoux, no porto do Rio de Janeiro, em fins do século XIX.
** Professor da UFS e presidente do IHGSE. E-mail: samuel@ihgse.org.br

AS LINGUAGENS ARTÍSTICAS DO CANGAÇO

Evento foi um sucesso

Lampião: bandido ou herói? A contenda ainda divide opiniões entre os estudiosos - mesmo aqueles que asseguram imparcialidade - entre os sertanejos então, que tiveram parentes engrossando a cabroeira de Lampião ou servindo as volantes. Mas Lampião, independente do maniqueísmo que envolve sua atuação, desenvolveu dotes artísticos desde a juventude. Era um hábil artista do couro. Fazia composições poéticas de rara melodia. Exímio dançarino do xaxado, Lampião pisou a dança pelos sertões como um rito das conquistas. Ele teria imprimido no cangaço uma aura artística que o pesquisador Frederico Pernambucano de Mello chegou a definir como um movimento cultural. Endossando a tese do cangaço como fonte inspiradora de arte no passado e no presente é que a Associação Sertão nas Artes propôs o ciclo de palestras “As linguagens artísticas do cangaço”, sendo que o primeiro módulo aconteceu sábado (9/8), na Câmara Municipal de Nossa Senhora da Gloria.

O historiador e poeta Thiago Fragata, convidado para coordenar a sessão, esclareceu acerca da concepção e metodologia, destacando a importância e inovação do evento se comparado a outros que abordam o cangaço. Para ele “as pesquisas sobre cangaço deveriam ter avançado, infelizmente os autores patinam no maniqueísmo bandido x herói. Apesar da presença de artistas e estudantes neste auditório, percebo o tema como algo que desagrade a maioria dos pesquisadores e a boa parcela do povo nordestino traumatizado pelo cangaço. De um lado, aqueles que heroificam Lampião resistem a aceitá-lo como um sensível artista, então descambam para o preconceito sobre tal possibilidade revelando que o isso macularia a fama de valente e cabra-macho. Por outro lado, aqueles que acusam Lampião de bandido não conseguem enxergar outra coisa além, é compreensível, afinal estão cegos pelo ódio".

O cangaço na literatura brasileira foi o título da palestra de Ramon Diego que é poeta e membro da Academia Gloriense de Letras (AGL) e da Associação Sertão na Arte. Recorrendo a constituição do sertanejo forte traçado por Euclides da Cunha e rastejando pela “biblioteca Lampião” de Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado, Raquel de Queiroz  e Guimarães Rosa ela considerou o cangaceirismo da literatura regional e suas permanências. Diante de um tema com amplas possibilidades considerou o seu recorte como uma das tantas abordagens suscitadas pela proposta.

Jéssica Souza tratou da relação do cangaço com a dança denominada xaxado. Discorreu sobre a origem, significado do étimo “xaxado” e divulgação por parte de Lampião e do seu bando. Ela compara a manifestação artística existente em 2 municípios onde a memória do cangaço mostrasse especialíssima: Serra Talhada/PE lugar de nascimento de Lampião, Poço Redondo/SE, lugar onde Lampião deu seu último suspiro. A pesquisadora concluiu que enquanto a expressão na cidade pernambucana é consumada apenas na dança e Lampião figura como centro das atenções, no município sergipano predomina intervenções teatrais do bando que contracena com Lampião.  

Em breve, a Associação Sertão na Arte divulgará a data do segundo módulo do ciclo de palestras As linguagens artísticas do Cangaço. Você que não conseguiu prestigiar o lançamento poderá comparecer e ainda garantir certificado de participação, é o que garante o Presidente Binho Nortzd.



GALERIA DE IMAGENS 
(Fotos: Romário Andrade)




ANEDOTÁRIO DE SÃO CRISTÓVÃO: O RELÓGIO - III

Relógio do Sol que fica no pátio do Seminário Diocesano (Paraíba)
José Thiago da Silva Filho*

 No ruidoso mundo atual, silêncio e cemitério assumiram condição de sinônimos. Mesmo diante de obras de arte excepcionais e templos seculares que convidam a contemplação poucas pessoas desenvolvem a sensibilidade do olhar. Em uma de suas crônicas, o jornalista Junot Silveira recomenda aos visitantes como visitar “São Cristóvão de minha saudade”, este é o título da obra que diz assim:

Deve-se chegar a São Cristóvão como ensina o poeta, caminhando mansamente, pisando de leve como pisam os pássaros no seu no seu andar nervoso. Assim, respira-se melhor o ar da cidade antiga, penetra-se mais profundamente na sua atmosfera colonial, integra-se na sua tradição, na sua glória, na sua paisagem e nos seus costumes. (…) o melhor mesmo, em São Cristóvão, é adotar a receita do poeta. É o mais condizente para o visitante respeitoso, que não perde a calma e a sabedoria. (…) São Cristóvão não é para os grupos ruidosos nem o visitante apressado”. (1) Ou seja, é preciso mesmo esquecer o relógio e a maratona que alguns receptivos organizam para o turista conhecer as cidades históricas. E por falar em relógio, está na hora de voltar ao caso da pedra da força...

Se a pedra que ficava guardada num quarto isolado do antigo Sindicato dos Operários de São Cristóvão não foi base da forca, ela pode também não ter sido base de um catavento. Em 1902, Laudelino Freire publicou Quadro Chorografico de Sergipe. Nesta obra, página 150, jaz uma informação pertinente que re-orienta nossa investigação para a possibilidade da pedra em questão ter pertencido a um rudimentar relógio de sol ou relógio de água. Autor escreve que na Praça São Francisco, há pouca distância do cruzeiro em ruinas ficava a coluna “da elepsydra”.(2)!?

Depois de consultar alguns dicionários do século XIX e mesmo o Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa (1935) publicado por ele, Laudelino Freire, percebi que a palavra elepsydra não existe. Acredito que o erro foi problema de impressão ou descuido do autor; na correta grafia seria clepsydra. Clepsidra ou Clepsydra, informa o citado dicionário, é um “relógio de água usado pelos antigos”.(3)

Catavento, chafariz, água, clepsidra... desculpem! Não irei especular o mecanismo hidráulico, o desenho da engenhoca. Deixo as informações coligidas e divulgadas por conta de futuros pesquisadores interessados no caso enigmático. Se o relógio que se reportou Laudelino Freire fosse um relógio do sol em pedra calcárea, creio, seria a semelhança do que existe na Paraíba, no pátio interno do antigo Seminário Diocesano, na Igreja de São Francisco.

Uma consideração final. Para cada um dos casos pitorescos colhido entre os seus, o memorialista sancristovense Serafim Sant'iago pontuava no seu anuário como sendo “mais uma anedocta”.(4) Pois bem, fiz a minha crônica em cima dos indícios de Clodomir Silva e Laudelino Freire misturados ao anedotário popular, as estórias, causos que ainda se contam na cidade histórica. Escutei, compartilhei a luz de hipótese e da imaginação uma gênese da rumorosa pedra da forca que durante um tempo, década de 1940 e 1950, ficou recolhida numa das salas do antigo Palácio Provincial, hoje Museu Histórico de Sergipe. Sobre a hipótese na História, esclarece Besselaar numa obra indispensável a formação de pesquisadores comprometidos com investigações desafiadoras, “trata-se de uma explicação provisória de fatos insuficientemente abonados pelos documentos ainda existentes”. Quanto a imaginação, elemento difícil de dosar com os dados colhidos no exercício da escrita – isso porque um deslize definirá o produto como essencialmente ficcional – incentiva o insuperável manual Introdução aos Estudos Históricos “não se escrevem certas páginas da História sem a ajuda da imaginação”.(5)

O anedotário apresentou o caso da pedra da forca com um mínimo de rigor cientifico e imaginação. Lançar hipóteses é algo por demais temerário para quem tem reputação de pesquisador, neste caso gostaria de esclarecer ao leitor - quem sabe um pesquisador da nossa História -, que meu esforço é justamente este: lançar hipóteses. Isto sempre trás um tanto de ousadia, crescente ousadia. (fim)


* José Thiago da Silva Filho (ou Thiago Fragata) é historiador e poeta; especialista em História Cultural pela UFS; sócio do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGSE), membro do Grupo de Pesquisa Culturas, Identidades e Religiosidades (GPCIR/CNPq); Diretor do Museu Histórico de Sergipe (MHS/Secult). Email: thiagofragata@gmail.com Publicado no JORNAL DA CIDADE. Aracaju, ano XLIII, N. 12.628, 12/8/2014, p. B-6.



FONTES DE PESQUISA

([1]) SILVEIRA, Junot. São Cristóvão de minha saudade. In: São Cristóvão Del Rei. Governo de Sergipe: Imprensa Official da Bahia, 1969.

(2) FREIRE, Laudelino. Quadro Chorografico de Sergipe. Paris/Rio de Janeiro: Guarnier Livreiro-editor, 1902, p. 150.

(3) FREIRE, Laudelino. Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa - Vol II. 2ª. Rio de Janeiro: livraria José Olympio Ed., 1954 (1ª. Ed. 1935), p. 1428.

(4) SANTIAGO, Serafim. Annuário Christovense ou cidade de São Cristóvão. São Cristóvão: EDUFS, 2009.

(5) BASSELAAR, José Van Den. Introdução aos estudos históricos. 5ª. Ed. São Paulo, EPU, 1979, p. 266 e 272.

IMAGEM: Relógio do Sol, pátio interno do antigo Seminário Diocesano, na Igreja de São Francisco. Paraíba. Capturado em 20/07/2014 http://www.bancodaimagemedosom.blogger.com.br/


WASHINGTON LUÍS VISITA SERGIPE

  Washington Luis Por Gilfrancisco* Washington Luís Pereira de Sousa, político e historiador (Macaé – Rio de Janeiro, 1870 – São Paulo, 19...