Ponte Velha ou Ponte Santa Cruz sobre o Paramopama, em São Cristóvão/SE, déc. 1940 (Acervo IPHAN)
Samuel Albuquerque**
Antes de deixar para trás o Engenho
Rio Comprido e seguir viagem pela estrada oitocentista que ligava as cidades de
São Cristóvão e Laranjeiras, algumas considerações...
Sem o socorro da Arqueologia
Histórica, a reconstituição do trajeto entre a Igreja Nossa Senhora da Vitória
e o início da estrada para às Laranjeiras foi possível graças aos registros
legados por Serafim Santiago, em seu “Anuário Cristovense”. Os 500 metros do
referido trajeto, descritos no primeiro artigo desta série, passavam pelas
antigas Praça da Matriz, Rua de São Francisco, Ladeira de São Francisco, Praça
do Mercado, Rua da Feira Velha e Ponte Santa Cruz. Grosso modo, o mesmo trajeto
pode ser feito passando pelas atuais Praça Getúlio Vargas, Travessa Municipal,
Ladeira do Açougue, Rua Marechal Deodoro, Travessa Dr. Carlos Menezes e Rua Dr.
Graccho Cardoso. Habitualmente, só é possível percorrê-lo a pé, considerando o
estreitamento da Ladeira do Açougue próximo a linha férrea e o sentido do
trânsito de automóveis nas vias da Cidade Baixa.
Desde o ponto de partida, registra-se um
“mundo de coisas” dignas de nota, a começar pelo lastimável estado de
conservação da antiga sede da Prefeitura Municipal de São Cristóvão, na ponta
noroeste da Praça Getúlio Vargas, esquina com a Travessa Municipal (antiga Rua
de São Francisco). Também denominado Palácio Governador Dr. Augusto do Prado
Franco, o prédio foi construído entre 1932 e 1951, substituindo o “elegante e
moderno” sobrado que pertenceu ao comerciante português Antônio Fernandes de
Souza (Santiago, 2009, p. 275).
A íngreme e sinuosa Ladeira do Açougue
(antiga Ladeira de São Francisco) é uma das vias mais inspiradoras de São
Cristóvão. Há séculos ela une as ditas cidades alta e baixa e dela se tem uma
ampla tomada da malha urbana, que se dilata para noroeste e norte. No sentido
horário, avistamos os tanques que, substituindo os antigos ternos de salinas, servem
à prática da aquicultura no bairro Apicum-Merem (antigos apicuns nas baixas do Sítio
Merem). Em seguida, a ocupação desordenada do Alto da Divinéia (antigo Sítio
Merem de Cima) e do Morro da Favela (com sua agigantada imagem do Senhor dos Passos)
prende nossa atenção.
A Ladeira do Açougue foi recentemente
socorrida pelo Programa Monumenta do IPHAN/Ministério da Cultura. A obra de
requalificação foi concluída em julho de 2012 e algumas práticas populares têm
conferido um colorido especial àquela artéria. As donas de casa que por ali
residem costumam esticar seus varais nas bordas da ladeira. O sol ajuda a secar
rapidamente e o vento movimenta as toalhas de cama e mesa que, com seus
múltiplos tons, enchem de vida a paisagem.
As memórias de Serafim Santiago
sugerem que, até princípios do século XX, a Ladeira do Açougue era menos
sinuosa e bifurcava-se em sua base, dando acesso às ruas que levavam ao Porto
São Francisco e a Praça do Mercado (atuais ruas Porto São Francisco e Marechal
Deodoro). A instalação da ferrovia, contudo, provocou drásticas mudanças na
paisagem da cidade. Uma delas pode ter sido a mutilação da secular ladeira, em
princípios da década de 1910.
Para além do barulho e do grande
movimento da zona comercial, a mutável Cidade Baixa reserva algumas surpresas
aos olhares mais atentos. Na Rua Marechal Deodoro, ao lado direito do Mercado
Municipal Lauro Rocha de Andrade e separados por uma viela, estão dois
interessantes prédios da primeira metade do século passado. O primeiro deles,
segundo depoimentos colhidos pelo historiador Thiago Fragata, pertenceu ao
comerciante de origem italiana Baltazar Mandarino, que ali inaugurou uma loja
de tecidos. Posteriormente, o prédio foi alugado a outros empreendedores locais,
que diversificaram as atividades comerciais do estabelecimento. O segundo prédio
é o antigo Talho de Carne Verde, inaugurado em 1931 e que, possivelmente,
substituiu a primitiva Casa do Açougue, arruinada em princípios do século XX
(Santiago, 2009, p. 108). Nos dois casos, restauro e funcionalidade se fazem
urgentes.
Seguindo pela Rua Marechal Deodoro e
tomando, em seu último trecho, a Travessa Dr. Carlos Menezes, alcança-se a
Praça Dr. Lauro de Freitas, onde está o combalido Terminal de Integração
Prefeito Gileno Barreto (antiga Estação Rodoviária Erundino Prado Filho), e o
início da Rua Dr. Graccho Cardoso (antiga Rua da Feira Velha), que segue no
sentido norte até a Ponte Santa Cruz. Nesse trecho, chama nossa atenção a
antiga Estação Ferroviária de São Cristóvão, por trás do terminal de ônibus; o
nicho e a ponte Santa Cruz, ao final da Rua Graccho Cardoso.
Cerca de 100 metros antes da Ponte
Santa Cruz, a Rua Dr. Graccho Cardoso é cortada pelo córrego (com feições de
canal sanitário) que no passado era conhecido como Riacho Cachorro, um modesto
afluente do Paramopama notado e descrito por Clodomir Silva, em seu “Álbum de
Sergipe” (Silva, 1920, p. 280).
O nicho conhecido como Santa Cruz da Ponte
é um bem que singulariza a paisagem da Cidade Baixa. Preservado por moradores
da Rua Dr. Graccho Cardoso, ele existe, ao menos, desde a década de 1880.
Contudo, registros fotográficos do acervo do IPHAN/SE indicam que a singela
casa de orações foi reedificada, ainda mais próximo à ponte e ao Paramopama, em
meados do século XX.
Serafim Santiago, ao descrever os
festejos religiosos do mês mariano em São Cristóvão, registrou: “começavam,
logo no dia 25 de abril, as novenas de Santa Cruz, com grande animação em toda
a Cidade e seus lugares vizinhos, principalmente as que com a festa se celebram
no nicho que fica a direita da ponte de pedra ao sair da cidade, no fim da rua
denominada ‘Feira Velha’”. Informou, ainda, que “naquela pequena casa de
orações, em alguns anos até Sermão foi proferido pelo conhecido orador sacro
vigário Barroso, havendo nas noites de novena, conforme o gosto dos mordomos ou
novenários, fogos de artifícios, esplendida iluminação e leilão” (Santiago,
2009, p. 232 e 233).
Quanto à “ponte de pedra e cal na
saída da cidade”, a mesma que ao final da Rua Dr. Graccho Cardoso passa sobre o
Paramopama, sabemos ter sido reedificada ainda na primeira metade do século
XIX, durante a “administração esclarecida” do presidente Manuel Clemente
Cavalcanti de Albuquerque (1798-1826). Conforme Maria Thetis Nunes, “conhecendo o quanto o progresso econômico sergipano
estava na dependência de estradas para o escoamento da produção agrícola,
especialmente a açucareira, [o presidente] planificou e construiu algumas, e
também pontes, reedificando a que cruzava o rio Paramopama” (Nunes, 2000, p.
141).
Outra restauração importante na Ponte
Santa Cruz foi realizada, ao que tudo indica, nas primeiras décadas do século
XX. Segundo Serafim Santiago, a ponte, “formada com duas arcadas e tendo dois
assentos laterais apropriados ao descanso dos viajantes”, teria sido acudida
pelo intendente Fausto Francisco dos Santos, “que procurou bons pedreiros,
mandou preparar argamassa com azeite de peixe e meteu mãos a obra na referida
ponte, que já se achava em princípio de ruína” (Santiago, 2009, p. 109). Atualmente,
a beleza da antiquíssima ponte é ocultada pelo avanço de ocupações irregulares
nas margens do Paramopama. Rio e ponte estão espremidos entre prédios
residenciais e comerciais da caótica Cidade Baixa. (Continua)
*Samuel Albuquerque é professor da UFS e presidente do IHGSE.
Email: samuel@ihgse.org.br
**Publicado no JORNAL DA CIDADE. Aracaju, 3 ago. 2013, caderno B,
p. 6.
Bibliografia:
SANTIAGO, Serafim. Annuario Christovense... São Cristóvão: Editora
UFS, 2009. p. 77-79, 108, 109, 117, 232, 233, 275, 317, 328, 329 e 335.
SILVA, Clodomir de Souza. Coronel José de Faro. In: _____. Album
de Sergipe, 1820-1920. São Paulo: O Estado de S. Paulo, 1920. p. 280.
NUNES, Maria Thetis. Sergipe provincial I: 1820-1840. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000. p. 141.
BASE CARTOGRÁFICA dos Municípios Litorâneos de Sergipe. [Aracaju]:
PRODETUR-NE II/Ministério do Turismo, 2004 [ortofotocarta 691-778];
ANEXO I da Proposição de Inscrição da Praça São Francisco em São
Cristóvão/SE na Lista do Patrimônio Mundial. [Aracaju]: Governo de Sergipe/Prefeitura
de São Cristóvão/IPHAN, [2010].
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