João Gomes de Mello (1809-1890), Barão de Maruim, aprox.1860 (Acervo do IHGSE) |
Samuel Albuquerque**
Há
menos de um mês, nos dias 15 e 16 de março, tomei o prumo da antiga Cidade de
Sergipe d’El Rey, somando-me aos milhares de devotos que, anualmente, dão vida às
celebrações ao Senhor dos Passos.
Nestas
linhas, contudo, não me deterei na análise daquela arrebatadora experiência.
Amigos historiadores como Verônica Maria Meneses Nunes e Magno Francisco de
Jesus Santos já o fizeram. Irei, sim, deter-me a um “fato museal” que pouco
repercutiu durante aqueles dias consagrados à fé cristã: a exposição temporária
“Nos passos do Senhor dos Passos”, aberta ao público no último dia 8 de março,
no Museu de Arte Sacra de São Cristóvão – MASC, sob a curadoria da pedagoga Denize
Santiago da Silva.
Atraindo,
somente, cerca de 80 visitantes (conforme o livro registros), que por lá
passaram entre os dias 15 e 16, a exposição viu refletir em seu público muito
do que era visível nas históricas ruas de São Cristóvão: a predominância de largartenses
entre os romeiros (também se destacando aracajuanos, britenses, itabaianenses,
estancianos e cristovenses).
Grosso
modo, a exposição apresentou aos visitantes um conjunto de túnicas que, entre a
segunda metade do século XIX e meados do século XX, vestiram a cultuada imagem
do Senhor dos Passos. As peças são do acervo da Ordem Terceira de Nossa Senhora
do Carmo e, genericamente, encontram-se em bom estado de conservação.
Seja
por sua beleza ou pela qualidade dos materiais utilizados em sua confecção,
seja pelo valor simbólico a ela agregado, destacou-se na exposição a túnica que,
supostamente, foi oferecida ao Senhor dos Passos pelo Barão de Maruim. No campo
informativo que registrava “Túnica do século XIX, doada pelo Barão de Maruim” também
constava que a peça foi confeccionada em veludo roxo, forrada de tafetá róseo e
decorada com fios de ouro na gola, mangas e barra.
Confesso
ter dúvidas sobre a procedência daquela doação ao Senhor dos Passos. Segundo a
curadora, o dado exposto foi apanhado na tradição oral, que também dá conta do
local de confecção da túnica: a França.
Como
é dever da História inquirir a memória (atestando, relativizando ou negando
verdades por ela difundidas), ensaiemos um exercício de crítica histórica,
tomando como referência, inclusive, outros registros da memória cristovense.
A
historiografia sergipana nos ensina que a cidade de São Cristóvão, durante o
Segundo Reinado, era reduto do Partido Liberal, enquanto Aracaju e outras
cidades e vilas da Cotinguiba eram redutos do Partido Conservador. Dessa forma,
o grupo político que dominava o vale do Vaza-Barris (municípios de São
Cristóvão e Itaporanga d’Ajuda) não era aquele sobre o qual o Barão de Maruim
(1809-1890) exercia sua influência, mas sim o grupo político capitaneado, até
princípios da década de 1860, pelo comendador Sebastião Gaspar de Almeida Botto
(1802-1884) e, depois disso, pelo Barão da Estância – como ficou conhecido
Antônio Dias Coelho e Mello (1822-1904), senhor do Engenho Escurial, em São
Cristóvão, e político de proa que chegou ao Senado do Império.
Em
São Cristóvão, principalmente após 1855 (ano da transferência da capital da
Província de Sergipe para Aracaju), o Barão de Maruim era, claramente, uma
“persona non grata”. As páginas do "Annuario Christovense”, escritas por
Serafim Santiago (1860-1932), o mais célebre memorialista de São Cristóvão,
estão tomadas pela aversão dos cristovenses ao Barão de Maruim, político
pejorativamente classificado como egoísta, traidor e ave de rapina.
O
sentimento que, na década de 1920, movia a pena de Serafim Santiago
assemelha-se àquele que, na São Cristóvão de hoje, alimenta a lenda de que, na
comovente Procissão do Encontro (realizada sempre no segundo domingo da
Quaresma), quando a imagem do Senhor dos Passos alcança a Praça de São
Francisco, um besouro popularmente conhecido como vira-bosta dá voltas em torno
da cabeça coroada com espinhos do Cristo. Seria o Barão de Maruim convertido em
um inseto, pedindo perdão ao Senhor dos Passos pelo pecado cometido, em 17 de
março de 1855, contra a abençoada “matrona do Paramopama”.
Não
consigo, dessa forma, vislumbrar uma relação direta entre o Barão de Maruim e os
atos devocionais ao Senhor dos Passos em São Cristóvão. Pelo contrário, ao
custear a ereção do faustoso templo consagrado ao Senhor dos Passos em Maruim (atual
igreja matriz da Paróquia Senhor dos Passos), é provável que o político
mudancista pretendesse tirar de São Cristóvão também a primazia na vida
espiritual da Província de Sergipe, atraindo devotos para outra morada do
Senhor dos Passos, inaugurada em princípios da década de 1860.
É,
inclusive, no altar-mor daquele templo maruinense que jaz o Barão de Maruim.
Morto no Rio de Janeiro em 1890, em plena ressaca republicana, o ex-senador e
barão do Império foi sepultado do cemitério da Ordem Terceira dos Mínimos de
São Francisco de Paula, de onde os seus restos mortais foram transladados pelo
Governo de Sergipe, em 1937. (Continua)
*Artigo
publicado no JORNAL DA CIDADE.
Aracaju, ano LXIII, n. 12524, de 6 e 7 de abril de 2014, p. A-7.
**SAMUEL
ALBUQUERQUE é professor da UFS e presidente do IHGSE. E-mail:
samuel@ihgse.org.br
FONTES/BIBLIOGRAFIA
UTILIZADAS:
ALBUQUERQUE,
Samuel. “Registros epigráficos da Paróquia Senhor dos Passos, em Maruim/SE”. Aracaju,
2013 (Arquivo/Biblioteca Samuel Albuquerque).
NUNES,
Verônica Maria Meneses; SANTOS, Magno Francisco de Jesus. Na trilha dos passos
do Senhor: a devoção ao Senhor dos Passos de São Cristóvão/SE. “Revista da FAPESE
de Pesquisa e Extensão”, v. 2, p. 97-110, 2005.
SANTIAGO,
Serafim. “Annuario Christovense ou Cidade de São Christovão”. São Cristóvão:
Editora UFS, 2009.
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