Cartaz 2014 |
Magno Francisco de Jesus Santos**
Segundo domingo da Quaresma. Domingo da transfiguração; dia em que
os sergipanos seguem para um só destino. Dia em que São Cristóvão
se transforma na capital católica do estado, na Jerusalém
sergipana. Trata-se de um tempo de transformação, penitência e
celebração da dor, com romeiros transportando o Cristo com o grande
madeiro sobre seus ombros. Como Simão, o cirineu, os sergipanos
expressam sua fé ao Senhor dos Passos e renovam a esperança de dias
melhores.
Ao longo da segunda semana do tempo quaresmal o ritmo dos lares de
muitas famílias sergipanas é alterado. As lojas de cidades
interioranas expõem o seu estoque de tecidos roxos. Costureiras
adiantam a confecção de mortalhas. Artesãos dão os últimos
retoques nos ex-votos encomendados. Proprietários de ônibus e
caminhões revisam seus veículos para o transporte de romeiros.
Trabalhadores rurais olham esperançosos para o céu a espera da
chuva que sempre vem na sagrada semana de Passos. As conversas e os
pensamentos de muitos sergipanos giram em torno de um mesmo tema: a
romaria do Senhor dos Passos da cidade de São Cristóvão.
Para as famílias católicas de Sergipe, o segundo final de semana da
Quaresma é respeitado como se fosse uma prévia da Semana Santa,
dias de penitência e de rememorar os sofrimentos de Cristo a caminho
do Calvário. Os evangelhos remetem à transfiguração de Jesus como
revelação de sua natureza divina. Nas ruas de São Cristóvão,
primeira capital de Sergipe, celebra-se o Cristo desfigurado, por
meio da devoção ao Senhor dos Passos.
O Senhor dos Passos, principal devoção católica do povo sergipano,
pode ser visto como uma bela representação do povo simples que lota
as ruas da cidade, com seus calejados pés descalços, com suas
mortalhas roxas e suas faces sofridas. Ao longo dos três dias de
celebrações, milhares de romeiros choram e rezam diante da imagem
do Senhor dos Passos. O que esses romeiros encontram nessa imagem? A
sua própria face. A angústia da dor e do abandono. O ultraje da
humanidade. O olhar doloroso do Senhor dos Passos que se confunde com
suas próprias dores.
Falar na romaria do Senhor dos Passos significa discutir a
permanência de práticas de sacrifícios. Pelas estradas e rodovias
de Sergipe deslocam-se famílias inteiras, vestidos com mortalhas
roxas e segurando seus cajados, a mercê da insegurança e
vulneráveis aos perigos. Pelas ruas da velha cidade, promesseiros
participam das procissões ajoelhados, rolando pelo chão ou até
mesmo embaixo dos andores. Ao final de cada procissão, ocorre o
milagre do Senhor dos Passos: na cidade de São Cristóvão ocorre
uma chuva de túnicas roxas, quando os romeiros se despem e atiram
suas vestes na imagem sagrada.
A romaria do Senhor dos Passos também é o lócus dos sentidos. Para
sentir o tempo de penitência dos Passos podemos fechar os olhos e
ouvir o dobrar dos sinos, os motetos dos sete Passos, o lastimoso
canto da Verônica ou os benditos dos pedintes. Podemos sentir os
cheiros que rondam a cidade, com os cabelos queimados pelas velas na
Procissão do Depósito, com o manjericão exposto nos andores. O
paladar também é inconfundível com as famosas queijadas e
briceletes vendidos nas ruas e ladeiras da cidade. O calor humano
transcende o espaço da igreja, sentido no aperto entre os devotos
transportando os andores do Senhor dos Passos e da Virgem da Soledade
pelas ruas estreitas. Podemos finalmente abrir os olhos e ver o
colorido dos parques de diversões na cidade baixa, o roxo nas
sacadas dos casarões, das igrejas e dos corpos dos romeiros, sem
esquecer do que os devotos fazem questão de destacar: a beleza dos
"olhos vivos dos Senhor dos Passos".
É o Domingo de Reminiscere, do Salmo, que clama "Senhor, lembra
de tua misericórdia e do teu amor que existe desde sempre"
(Salmos 25:6). É o dia em que a população católica sergipana
lembra suas tradições e reforça os seus laços devocionais com o
Senhor dos Passos. Avós, pais, filhos e netos, vestidos de roxo,
descalços e com velas nas mãos acompanham a imagem do Senhor dos
Passos e mostram a vitalidade do patrimônio cultural de Sergipe, por
meio da superação das dificuldades provocadas pela exclusão social
e na certeza que no próximo ano, estando vivos, retornarão para a
cidade, que no campo religioso, nunca deixou de ser capital.
*Artigo publicado no JORNAL DA CIDADE. Aracaju, 6 de abril de 2014.
** Magno Francisco de Jesus Santos é Editor da Revista do IHGSE e professor da Faculdade Pio Décimo
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