Na minha infância, eram
corriqueiras as conversas familiares no entardecer, na hora da refeição ou nas
farinhadas. Tratava-se de momentos únicos na transmissão dos saberes, pois os
avós e pais narravam suas aventuras, reproduziam com encanto as lendas e os
mistérios do mundo rural. Saudosismo a parte, foi em uma dessas ocasiões que
ouvi falar da estória da sagrada família em fuga das tropas de Herodes. De
acordo com essas frágeis lembranças, após o nascimento de Jesus, a sagrada
família fugia e se escondia dos soldados temendo o assassinato do Menino Deus.
Nessas fugas, duas aves os acompanhavam: uma andorinha e um bem-te-vi. A andorinha
seguia o jumentinho, apagando os rastros da caminhada, dizendo: “fogo pagou,
por aqui não passou”. Na sequência, vinha o bem-te-vi, falastrão: “Olhe que eu
vi”.
Essa narrativa reproduzida
dramaticamente para as crianças de outrora, era uma justificativa para a
sacralidade da andorinha e a maldição do bem-te-vi. Contudo, podemos buscar um
elemento que extrapola o nível do sagrado, que é a questão da memória. O
bem-te-vi, com esse episódio teria perdido a proteção humana, mas revelou um
ato de fundamental importância para o mundo ocidental: a capacidade de lembrar
e, principalmente, a sagacidade de testemunhar. Trata-se de um dos pilares da
escrita da história nos moldes pensados na cultura greco-romana. Por isso, a
traição sagrada, tão reproduzida nos tempos de tortura, pode ser relativizada
ou até mesmo redimida com a percepção de sua perspectiva de testemunha de seu
tempo.
É exclusivamente por essa
vertente que vejo uma aproximação entre a ave mítica e dois artistas que publicaram
a inspiradora “São Cristóvão, poética e xilogravada”. Thiago Fragata e Nivaldo
Oliveira, uniram forças e talento para produzir uma obra concebida como um
testemunho de sua época, um passeio revelador das práticas cotidianas e
exuberantes da antiga capital sergipana. O verbo, cadente e denunciante, se
materializa e revela-se em imagens fortes e firmes, com as xilogravuras do
artista que se integrou a alma da velha cidade.
A cooperação entre os dois
artistas, por vezes, nos remete a episódios icônicos da experiência historiográfica
nacional, entre as quais a exitosa viagem, realizada nos idos de 1917, do
historiador Rocha Pombo e do artista Galdino Guttmann Bicho pelo norte do
Brasil, no processo de feitura de um livro de história pátria. Ao contrário dos
intelectuais pretéritos, Thiago Fragata e Nivaldo Lima não se deslocaram,
virando-se de costas para seu torrão natal. Com perspicácia e técnicas artistas
diferenciadas, os artistas olharam para as cenas do cotidiano. Reviraram suas
memórias, como quem lida com um baú e estranha seu próprio acervo.
São Cristóvão, poética e
xilogravada, é, acima de tudo, um registro de um olhar entrecruzado, ou seja, o
que foi visto e vivido no tempo presente, sentido no presente próximo das
reminiscências da infância ou do pretérito longínquo, lido nos cronistas da
terra. Os olhares, além de revelarem as cenas vivenciadas, denunciarem as
questões coloquiais de uma cidade pacata que se reinventa em suas festas e
tradições; expressam o posicionamento de quem olha. O olho do artista plástico
revelado nas gravuras registradas a altura do povo, como nas gravuras
“Procissão”, “Aguadeiro” e “Vendedor de peixe”. O restaurador emerge entre as
camadas populares, entre os atores do folclore e das celebrações populares.
Por sua vez, o “Poeta das
ladeiras”, mostra-se em oscilação nas suas reminiscências literárias, pois por
vezes emerge entre os atores sóciais das ruas estreitas da cidade, como ocorre
na empolgante poesia “Muqueca” e em outros momentos pinta um cenário que
denuncia o seu apurado ângulo de percepção, como “Um quadro noMuseu”,
expressivo olhar do diretor do Museu Histórico de Sergipe que via o seu lugar
de trabalho como a moldura de uma obra de arte que é patrimônio cultural da
Humanidade.
No passar das páginas, de
excelente qualidade gráfica, percebe-se que o poeta mostra-se como um cicerone,
o guia que apresenta a nostálgica São Cristóvão, “cidade minha, metáfora de
todos” (FRAGATA, 2015, p. 11). A urbes é tida como a “cidade-poesia” ou “doce
cidade”, com suas castanhas carameladas, barquinhos confeitados, queijadas e
má-casados. Cidade dos sabores. Contudo, a cidade se revela como o centro da
Misericórdia, na qual:
“Tem a saga do nazareno
Cidade vestuta, de portas pesadas
Barroca pela própria natureza:
Pedras, cruzes, promessas
Misericórdia!
Procissão e alarido, sedentas
bocas
Silêncio para o sermão de Barroso
Ecos, flertes, suor e cabelo
queimado” (FRAGATA,
2015, p. 29).
É a cidade das ladeiras, na qual
“certeza, a ladeira da Prefeitura é a maior de todas, faz romeiro desistir das
promessas... E subir o Cristo!” (FRAGATA, 2015, p. 35). Contudo, essas ladeiras
não impede o cicerone de palmilhar as ruas estreitas da capital de outrora.
“Senhor dos Passos, no Alto da
Favela
Guia dos meus passos
Águia de vôos rasos
Benvindo, romeiro de túnica e
laço
Itabaiana, Itabaianinha, Lagarto
Sigo você ao Convento do Carmo (FRAGATA, 2015, p. 37).
Com o sancristovense penitente,
busca sem êxito “um Cirineu para dividir o andor. É muita dor” (FRAGATA, 2015,
p. 63). Mergulha nas dores do passado, com perda do título de capital, com a
esperança inglória, pois “Dias de glória esperam nosotros espartanos. E, se não
acontece o milagre de Passos, somos homens de pouca fé” (FRAGATA, 2015, p. 65).
Por isso, do Museu, ele acompanha o Senhor dos Passos em todos os seus passos:
Um passo, sete passos
Compassado
Os passos, os romeiros
Passaram cantando pela janela do
sobrado
Eram pássaros trinados
Eram canoros, num era o besouro
Zunindo sobre as cabeças (FRAGATA, 2015, p. 67).
Com isso, o cicerone junta-se ao
romeiro, faz a “Promessa de Gregório” e diz:
“Senhor dos Passos, perdoe
pequei no carnaval (...),
dos sete pecados vezes sete
por causa da festa momesca”.
Caminha e retorna ao Convento do
Carmo e liberta a imaginação:
“Todo ex-voto guarda o milagre
Mistério, um segredo
Revela o nome do santo
Imaginamos a graça
Do promesseiro
O ex-voto desafia
A imaginação alheia
Não é o mistério da fé
A graça vencendo a desgraça (FRAGATA, 2015, p. 69).
Na obra, tão vistosa e igualmente
sonora, a graça do olhar sobre a vetusta capital vence por completo a desgraça
do desânimo pela perda do título que outrora ostentava, das mazelas políticas
vivenciadas no presente e, quem sabe, até mesmo das denúncias heréticas do
bem-te-vi nos tempos míticos. Desse modo, pode-se inferir que “São Cristóvão
poética e xilogravada” nasce como um valioso testemunho de seu tempo e cobre a
função de grande beleza e encanto, do regenerado canto do bem-te-vi. É uma obra
para ser lida, vista e sentida, pois nos remete as coisas do nosso povo. Usando
do trocadilho, é uma fragata que vale a pena ser navegada.
*Resenha postada no Boletim da Pio Décimo, dezembro 2015.
** Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre em Educação pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), Professor da Faculdade Pio Décimo. Resenha postada no Boletim da Pio Décimo, dezembro 2015.
** Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre em Educação pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), Professor da Faculdade Pio Décimo. Resenha postada no Boletim da Pio Décimo, dezembro 2015.
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