Praça São Francisco, provavelmente no final da década de 1950. Acervo: IPHAN. |
Samuel Albuquerque**
Seguindo
pela estrada que partia de São Cristóvão rumo às Laranjeiras, havíamos
estacionado no Engenho Rio Comprido, distante cerca de uma légua do ponto de
partida. Aproveitemos, então, para conhecer o seu primitivo dono, o capitão-mor
Henrique Luis de Araújo Maciel.
No
campo da História, autores como Felisbelo Freire, Carvalho Lima Júnior, Maria
Thetis Nunes, Ibarê Dantas e Vanessa Oliveira registraram a atuação do senhor
do Rio Comprido na vida política sergipana.
Em
1805, enquanto ouvidor interino da Comarca de Sergipe, Henrique Luis esteve no
fronte da reação aos desmandos do sargento-mor Bento José de Oliveira (1748-1808),
figura controversa que, desde a década de 1770, capitaneava ações truculentas
para impor sua vontade e interesses na capitania.
A
leitura de Felisbelo Freire nos ajuda a compreender o contexto no qual Henrique
Luis atuou. Segundo o historiador, em princípios do século XIX, “as forças
civilizadoras parece que se tornavam impotentes para corrigir o estado político,
intelectual e moral daquela sociedade, que com o andar dos tempos, em vez de
integrar-se e oferecer uma feição próspera, continuava a apresentar pontos de
semelhança com os tempos passados” (Freire, 1891, p. 209).
O
olhar positivista de Freire não enxergou progresso na evolução da sociedade
sergipana e a figura do sargento-mor Bento José representava bem esse atraso. Malfeitores
como ele, enfatizou: “penetram nas cadeias e soltam os presos que lhes podem
prestar os ínfimos serviços de instrumentos de vingança; prendem aqueles que
não se prestam à tão vil papel; instauram processos, por crimes imaginários,
sendo eles mesmos os encarregados de fazerem o interrogatório das testemunhas,
peitadas para dizerem o que lhes ensinam; obrigam lavradores a pagarem-lhes
altas porcentagens, pelo arrendamento das terras onde habitam, e como resposta
a qualquer protesto contra uma tal extorsão, mandam incendiar-lhes as choupanas
e derribar-lhes as plantações; entram nos centros populosos armados e
acompanhados de sequazes, assassinos, ostentando assim perante as autoridades o
prestígio das armas” (Freire, 1891, p. 211).
A
representação do temido sargento-mor construída ou divulgada por Freire converge
com aquelas legadas por outros historiadores, notadamente Maria Thetis Nunes,
que localizou e explorou documentos relativos à Sergipe no Arquivo Histórico
Ultramarino, em Lisboa. Imaginemos, então, o prestígio adquirido pelo ouvidor
interino Henrique Luis ao ajudar a dar cabo aos desmandos de sargento-mor Bento
José. Ele passou a ser admirado e respeitado em todo o Sergipe.
Carvalho
Lima Júnior, referindo-se a Bento José como um “sinistro personagem dos tempos
coloniais”, anotou: “Tendo dominado pela corrupção e pelo medo os ouvidores,
quase todos, do seu tempo, formados e efetivos, não conseguiu fazer o mesmo com
ouvidor interino, Henrique Luis de Araújo Maciel, um dos chefes da liga que em
Sergipe de então se podia chamar de salvação pública” (Lima Júnior, 1985, p. 74).
Após
décadas de desmandos, o “malfeitor fidalgo” foi surpreendido no Engenho Patí
(Santo Amaro da Brotas), em fins de 1806. Pouco tempo depois foi remetido de
Salvador para Lisboa, onde foi julgado e condenado, permanecendo preso até a
morte.
Em 18 de março de
1821, enquanto capitão-mor do Terço das Ordenanças de São Cristóvão, Henrique
Luis esteve presente e assinou o “termo de protesto” através do qual o brigadeiro
Carlos Cesar Francisco Burlamaqui (1775-1844), acossado pelas autoridades
baianas, entregou o governo de Sergipe à Câmara de São Cristóvão, antes de
seguir preso para Salvador (Freire, 1891, p. 231 e 232, nota 7). Naquele
momento, o senhor do Rio Comprido estava vinculado politicamente ao grupo
liderado por José Matheus da Graça Leite Sampaio (?-1829), capitão-mor do Terço das Ordenanças da Vila de
Itabaiana, que era favorável à emancipação de Sergipe e se opunha à facção
recolonizadora.
Três anos depois, quando Sergipe já figurava
entre as províncias do Império e buscava consolidar sua autonomia em relação à
Bahia, Henrique Luis tomou parte da malfadada “conspiração” para depor o
presidente Manuel Fernandes da Silveira (1757-1829). Ibarê Dantas, perscrutando
documentos do Fundo Padre Aurélio (no Arquivo do IHGSE) e dialogando com outros
autores, resumiu bem os fatos: “ao tentar equilibrar as finanças e organizar a
administração com um mínimo de funcionalidade, [o presidente da província]
encontrou uma grande reação” (Dantas, 2009, p. 43).
Ao descrever o cenário caótico
no qual o presidente Manuel Fernandes da Silveira teve de atuar, Felisbelo
Freire afirma que o “infrene militarismo” seria o principal obstáculo à boa
administração da província. “De 1822 em diante, a guarnição de São Christóvão
tendeu a interferir nos negócios públicos. Todas as aclamações, juramentos de
constituição foram por ela promovidos”, assinalou (Freire, 1891, p. 260).
Freire também informa que os
oficiais tidos como conspiradores foram “presos e enviados para a Bahia,
submetidos à conselho de guerra” (Freire, 1891, p. 268). Contudo, ao tratar dos
desencontros entre o presidente Silveira e o camandante das armas Manuel da
Silva Daltro, o historiador deixa escapar que o senhor do Rio Comprido, antes
de ser absolvido pelo Tribunal da Relação do Distrito da Bahia, esteve
“fugitivo por algum tempo”. Assim, não temos como afirmar que o influente Henrique
Luis esteve encarcerado em uma prisão baiana, aguardando julgamento. O certo é
que, “como
o prestígio dos implicados era muito forte, terminaram absolvidos e permaneceram
influentes” (Dantas, 2009, p. 44).
Digno de nota é a
parcialidade com a qual Felisbelo Freire tratou da figura de Henrique Luis,
dando pouca atenção aos serviços que o capitão-mor prestou à sociedade e
carregando nas tintas para enfatizar suas contradições no campo político. O
historiador também desloca para notas de rodapé informações que, no campo das
arbitrariedades, aproximam o presidente Silveira dos seus opositores. Em uma
dessas notas, por exemplo, registrou: “como co-réu da deposição que quis a
guarnição fazer em 29 de abril [de 1824], estava [Henrique Luis de Araújo
Maciel] entregue à justiça pública, pelo que não exercia suas funções de membro
do conselho para que foi eleito, sendo substituído por um irmão do presidente” (Freire,
1891, p. 271). Hoje trataríamos essa ação como uma clara manifestação de
nepotismo.
*Publicado no Jornal da Cidade. Aracaju, 22 jun. 2013, Caderno B, p. 6.
**Professor da UFS e
Presidente do IHGSE. Email: samuel@ihgse.org.br
Sequência
de fontes/bibliografia utilizadas:
FREIRE, Felisbello
Firmo de Oliveira. Historia de Sergipe (1575-1855). Rio de Janeiro: Typographia
Perseverança, 1891. p. 209, 211, 231, 232, 260, 268, 271.
NUNES, Maria Thetis. História de
Sergipe, a partir de 1820. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: INL, 1978. p. 88,
90, 94 e 95.
NUNES, Maria Thetis.
Sergipe Colonial II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996. p. 130-135 e
307-310.
NUNES, Maria Thetis.
Sergipe provincial I: 1820-1840. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000. p.
106-108, 119, 120, 148 e 157.
LIMA JÚNIOR,
Francisco Antonio de Carvalho. Capitães mores de Sergipe – 1590 a 1820.
Aracaju: SEGRASE, 1985 (Coleção José Augusto Garcez). p. 56, 58-61, 63, 64,
66-68, 73-76.
DANTAS, Ibarê.
Leandro Ribeiro de Siqueira Maciel (1825/1909). O patriarca do Serra Negra e a
política oitocentista em Sergipe. Aracaju: Criação, 2009. p. 24, 39, 40, 43-46.
GUARANÁ, Manoel
Armindo Cordeiro. Brigadeiro Manoel Fernandes da Silveira: 1º Presidente de
Sergipe. Revista do IHGSE, Aracaju, v. 1, n. 2, p. 37-41, 1913.
GUARANÁ, Manoel
Armindo Cordeiro. Dicionário bio-bibliográphico sergipano. Rio de Janeiro:
Pongetti & C, 1925. p. 208.
OLIVEIRA, Vanessa
dos Santos. Conflitos internos em Sergipe: a instabilidade política e a
consolidação da autonomia (1824). Revista do IHGSE, n. 34, p. 75-101, 2005.
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