O POETA MÁRIO FAUSTINO

 

Mário Faustino

                                                                    POR GILFRANCISCO*

   

Crítico exclusivo de poesia, Mário Faustino não teve a ventura de ser escritor publicado, pois na idade promissora dos trinta e dois anos, faleceu prematuramente em 1962, em circunstâncias trágicas, vítima dum desastre aviatório, acima dos Andes quando viajava a serviço da profissão de jornalista. Seus trabalhos poéticos estampados na imprensa e alguns inéditos, foram reunidos por Benedito Nunes, no livro Poesia de Mário Faustino, publicado em 1966. Faustino deu também contribuição de relevo para a divulgação e a discussão da obra de Ezra Pound (1885-1972), de que fez numerosas e excelentes traduções. A morte prematura de Faustino impediu que reunisse em livro esses trabalhos, publicados entre 1956-1959 no suplemento literário do “Jornal do Brasil”, acontecendo somente em 1985, Poesia-Ezra Pound, antologia organizada por Augusto de Campos, com traduções de Augusto e Haroldo de Campos, e mais Décio Pignatari, Mário Faustino, José Lino Grunewald, através da Editora Hucitec.

 

A rigor, Mário Faustino dispensa apresentação, mas nunca é demais insistir na sua permanente atualidade e no seu alto nível de realização literária. Jornalista, poeta, tradutor, crítico literário e advogado provisionado, foi um dos fundadores da Associação Brasileira de Escritores do Pará, pertenceu ao Conselho Nacional de Economistas, ocupou o cargo de chefia na superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazonas. Mário Faustino dos Santos, nasceu em Teresina-Piauí, a 22 de outubro de 1930. Em 1948 na capital paraense, participa da criação da revista Encontro (2º Trimestre, nº1, 1948) reunindo jovens intelectuais, como Rui Barato, F. Paulo Mendes, Haroldo Maranhão e outros. O ritmo do movimento renovador é o mesmo  que se observa em outros estados nordestinos, acompanhando com interesse o que se passa nestas capitais.

Em 1956, passa a morar no Rio de Janeiro sobrevivendo como professor de várias matérias na Escola de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas. Concomitantemente, passou a assinar a página Poesia-Experiência do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, mantida de 23 de setembro de 1956 até 1º de novembro de 1958. Somente em 1977, parte destes artigos foram compilados pelo crítico Benedito Nunes (1929-2011) e publicados em livro, prefaciado por esse mesmo critico, pela Editora Perspectiva.

Em 1959, Mário Faustino foi incorporado ao quadro de redatores do Jornal do Brasil. Em dezembro do mesmo ano, segue para os Estados Unidos da América para trabalhar na ONU, onde permanece até 1962. Tendo estagiado em vários jornais da América do Norte, Faustino falava fluentemente o inglês, francês, alemão, italiano e espanhol. Realizou importantes trabalhos de interpretação para o Museu de Arte Moderna e continuava ligado a ONU como diretor-adjunto do Centro de informações, em Nova Iorque.

Ainda em 1962, foi editor-geral da Tribuna da Imprensa por curto período. Sua vida, bruscamente interrompida a 27 de novembro daquele mesmo ano, quando o avião em que viajava com destino ao México, em missão jornalística, chocou-se com uma montanha em Las Palmas, subúrbio de Lima-Peru, depois de uma escala.




 

SUPLEMENTO LITERÁRIO – Matutino fundado no Rio de Janeiro a 9 de abril de 1891, o Jornal do Brasil sofreu a primeira reforma gráfica na gestão de Rui Barbosa, que trocou o “z” de Brasil por um “s”. Seis meses depois da fundação, Joaquim Nabuco assumiu a chefia da redação e escreveu uma série de artigos (As ilusões republicanas e outras ilusões) que provocaram o empastelamento do jornal.

Em 1892, a sua propriedade passou a uma sociedade anônima. A 21 de maio de 1893, Rui Barbosa assumiu a direção de redação, que logo foi forçado a deixar, asilando-se na embaixada do Chile. O jornal passou, então, à propriedade de Fernando Mendes de Almeida, transferindo-se em 1918, para o conde Ernesto Pereira Carneiro, que o conservou até a morte em 1954, quando o controle foi assumido por sua viúva, Maurina Dunshee de Abranches Pereira. Após sua morte em 1983, assumiu a presidência M. F. do Nascimento Brito.

Mesmo o Jornal do Brasil, tradicional periódico especializado em anúncios classificados, não escaparia ao surto da modernidade desenvolvimentista do país. Desta forma, é que, em 1958, sob a responsabilidade do poeta maranhense Odylo Costa Filho (1914-1979), o JB passa por mais uma mudança.

De layout novo, teve em Reinaldo Jardim e no artista plástico Amílcar de Castro os operadores da modificação, que sob as ordens do signo construtivista, direcionavam-se para a criação de novo modelo gráfico-visual.

Lançado a 3 de junho de 1956 o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil – SDJB, a primeira fase foi preparatória e anunciadora da reformulação geral de 1958. A segunda fase, que terminaria na virada de 1959, sentiu o ápice de importância, ao padronizar sua diagramação e pauta em torno das questões da vanguarda concretista, da ensaística e da tradução de inéditos textos críticos acerca da literatura e das artes:

A página-seção Livro de Ensaios – dividida em boxes que representam páginas de livros – surge para prover essa rápida atualização, revelam críticos como Augusto e Haroldo de Campos, José Lino Grunewald, Ferreira Gullar, Oliveira Bastos que manifestam os seus pontos de vista. Ezra Pound, Mallarmé, Sartre, Seguei Eisenstein, Henry James, Beckett, Apollinaire frequentam, semanalmente as edições dominicais.

As mudanças aceleradas do SDJB no espaço jornalístico e da cena cultural brasileira, chegam através da arrojada página Poesia-Experiência, dirigida por Mário Faustino entre 1956 e 1958, que teve atuação importante como poeta e crítico de poesia, é um autor de feição moderna, renovador e aperfeiçoador de forma herdadas da tradição, inventor de formas novas flexíveis.

Eclética como o próprio suplemento, propõe-se promover os novos poetas e operar uma ampla revisão da poesia antiga, mostrando o moderno que existe tanto em Lucrécio quanto em Marllamé. O lema, estampado na página, é “Repetir para aprender, criar para renovar”. Este credo de origem poundiana “make it new” capaz de reatualizar as formas do passado em função das exigências do presente, praticado com rigor por Mário Faustino, reveste-se de um tom grave que é próprio das diversas experiências artísticas da década.

Aprendendo e ensinando foi o principal papel da página Poesia-Experiência, uma peça importante na construção da modernidade. Pois Mário Faustino cumpriu esse papel com eficiência, estampando “exemplos” a cada semana em suas páginas, preenchendo os requisitos de racionalidade e economia para atingir a “eficácia” poética.

POESIA – Poeta circular, que se reescreve retomando os mesmos temas fundamentais, e que também reescreve a poesia, Mário Faustino tem uma obra pontilhada de referências. Não é só um dos maiores poetas contemporâneos brasileiros, mas também um poeta por excelência, modelar, por ser o poeta d experiência do poético, da essência da poesia como participação e amplicidade como um complexo emaranhado de textos e biografias.

Considerado um poeta de síntese e de confluência de linguagem, cultor de versos inventivos, é detentor de um estilo pessoal e inconfundível, que confere unidade, esta variedade de tratamentos formais, fazendo com que cada poema sempre remeta ao conjunto, à totalidade de sua obra. Ou seja, como seu vasto campo de referências ampliando o próprio espaço da linguagem, Mário Faustino, nos remete a um tema que continua atual e presente.

Não há dúvida que o concretismo provocou uma quase radical transformação na maneira como Mário Faustino abordava o poema. E é fácil verificar tal transformação ao se confrontar os trabalhos do seu primeiro livro publicado em 1955, O Homem e sua Hora. Com suas últimas produções, reunindo toda a experiência de um poeta que se sobressai por sua cultura extraordinária e um alto sentido de pesquisa da linguagem, elevando o verso àquela tensão decorrente de um conceito de que a poesia é concentração, é alta voltagem.

Sobre sua influência, Mário Faustino esclarece:

Não, não sou concretista. Minha formação é muito parecida com a dos poetas Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos e José Lino Grunewald, mas certos aspectos e maneira dessa mesma formação, bem como, e sobretudo, certas condições pessoais, nos colocaram e nos colocam em posição bem distintas, por mais que pareçam aproximadas aos menos informados. Os poetas acima são nitidamente inventores, no sentido poundiano, por mais que este ou aquele venha a ser também um mestre. [1]

Portanto, a poesia de Mário Faustino é leitura obrigatória a todo jovem que se disponha a exercer uma vocação para a qual não basta o talento, a inteligência, a experiência.

 LIVRO PÓSTUMO – Foi através do poeta/ensaísta paulista Haroldo de Campos (1929-2003), quando esteve em Salvador a convite da FCJA para realizar em 26 de setembro de 1989 a conferência O afreudisíaco Lacan na Galáxia de Lalíngua (Freud, Lacan a Escritura) [2], que fiquei sabendo da existência dos originais da Evolução da Poesia Brasileira, publicado por Mário Faustino em  Poesia-Experiência, Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, entre 31 de agosto a 21 de dezembro de 1958, em dez números consecutivos, que se encontrava em poder do escritor e professor da Universidade Federal do Pará, Benedito José Viana da Costa Nunes (1929-2011).

Em outubro de 1989, na qualidade de pesquisador da Fundação Casa de Jorge Amado e participante do X Encontro Nacional dos Estudantes de Letras – ENEL, que se realizaria em Belém do Pará, recebi incumbência do editor desta instituição cultural, o poeta Claudius Portugal, para convencer o professor Benedito Nunes, a ceder os originais Evolução da Poesia Brasileira, para publicação em forma de livro, a ser incluído na coleção Casa de Palavra da FCJA.

Em 5 de janeiro de 1990, recebo a primeira correspondência de Belém, enviada por Benedito Nunes, acerca dos originais de Mário Faustino:

... está sendo datilografado o trabalho de Mário Faustino – Evolução da Poesia Brasileira – para os cadernos. Quando estiver pronto, um amigo meu lhe enviará. Sigo amanhã para os Estados Unidos: Universidad de Vanderbilt, Nashville, Tennessee – Department of Spanish and Portuguese.

Vinte meses depois, receberia a segunda correspondência, datada de 20 de setembro de 1991:

Eis o escrito de Mário Faustino. Estou à sua disposição para esclarecer qualquer dúvida e, se for o seu interesse, apesar da demora na remessa, mando-lhe cordial abraço.

Graças a minha insistência de baiano, após várias conversas por telefone e cartas, consegui finalmente os originais do poeta/tradutor Mário Faustino, que foram publicados em noite de autógrafo de 23 de agosto de 1993, na sede da Fundação Casa de Jorge Amado, com a presença do próprio Benedito Nunes. Evolução da Poesia Brasileira, reúne treze artigos escritos por Mário Faustino, que de cada vez ocupava uma página inteira, ou seja, o espaço todo do folhetim Poesia-Experiência.

Como bem observou o crítico Benedito Nunes:

A crítica de Mário Faustino, escrevi na apresentação de Evolução da Poesia Brasileira que a Fundação Casa de Jorge Amado acaba de editar, é uma crítica que fez de um legado poético a resguardar, anti-tradicionalista, pela sua inclinação inventiva e descobridora, ai ao encontro do presente, pondo-se a serviço da inovação que abriria essa linguagem para as suas possibilidades futuras Talvez se possa falar nos mesmos termos, como um misto de tradicionalismo e anti-tradicionalismo – o que aqui – da poesia de Mário Faustino, da obra poética desse crítico de poesia. [3]

Obras – Embora falecido aos 32 anos de idade (1962) os apreciadores de sua obra estranham a raridade de menções para com o legado qualitativo deste poeta e crítico aguçado, tanto em relação à nossa literatura, quanto em relação as literaturas inglesa e francesa, das quais foi grande estudioso. Mário Faustino deixou-nos ricos ensinamentos, igualmente no campo jornalístico ao colaborar, desde os dezesseis anos de idade (1946), numa coluna diária no jornal Província do Pará, e na Folha do Norte, onde foi diretor de redação e publicou seus primeiros poemas e traduções da poesia norte-americana, inglesa e francesa.

Ao viajar por longo período pelos Estados Unidos da América, estudioso obsessivo como era, pode colher intensa experiência literária e vivencial que, consequentemente, ajudou-o a elaborar uma poesia densa e elevada, forjando-o crítico audaz e seguro. Mário Faustino continua sendo subestimado, pois raros foram os artigos publicados até hoje a respeito deste poeta. Após sua morte foram publicados cinco livros que ajudam a revelar sua grandeza: O Homem e sua Hora – Editora Civilização Brasileira, 1955; Cinco ensaios sobre Mário Faustino (Texto: Assis Brasil), Série Coletânea, nº 2, Editora GRD, 1964; Poesia de Mário Faustino – Antologia poética (Textos:  Paulo Francis e Benedito Nunes), Editora Civilização Brasileira, 1966; Poesia-Experiência, (Texto: Benedito Nunes), Editora, Perspectiva, coleção Debates nº 136, 1977; Poesia Completa-Poesia Traduzida (Texto: Benedito Nunes),  Editora Max Limonad, 1985; Os Melhores Poemas de Mário Faustino (Texto: Benedito Nunes), Global, 1985, 2ª ed. 1988; Ezra Pound-Poesia (Tradução: Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari, J. L. Grunewald e Mário Faustino), Editora da Universidade de Brasília, 1983; Evolução da Poesia Brasileira (Texto: Benedito Nunes), Fundação Casa de Jorge Amado, 1993; Mário Faustino: uma biografia, Lilia Silvestre Chaves. Editora Secult, 2004; Artesanato de poesia: Fontes e Corrente...Ocidental, Maria Eugênia Boaventura (org.). São Paulo, Companhia das Letras, 2004; Mário Faustino – uma poética da Modernidade, Maria Lúcia Gonçalves Balestriero. São Paulo, Editora UNESP, 2011; De Anchieta aos Concretos, Maria Eugênia Boaventura (org.). São Paulo, Companhia das Letras, 2021.

ARTIGOS/ENSAIOS – Dentre os trabalhos publicados sobre o poeta Mário Faustino, destacamos: Mário Faustino-Poeta e Crítico, J. L. Grunewald. Rio de Janeiro, Correio da Manhã, 15 de dezembro de 1962; Cinco ensaios sobre poesia, J. L. Grunewald. Suplemento Literário O Estado de São Paulo, 19 de dezembro de 1964; O poeta ne sua vida, Haroldo Maranhão. Suplemento Literário O Estado de São Paulo, 9 de julho de 1966; Introdução ao Fim, Benedito Nunes. Suplemento Literário O Estado de São Paulo, 9 de julho de 1966; A poesia de Mário Faustino, Foed Castro Chamma. Rio de Janeiro, Leitura, Ano XXIV, nº 106/107- maio/junho, 1966; Últimos Livros, Wilson Martins. Suplemento Literário O Estado de São Paulo, 14 de janeiro de 1967; Mario Faustino, o último “verse Maker” – 1, Augusto de Campos. Suplemento Literário, São Paulo, 12 de agosto de 1967; idem, 2., 19 de agosto de 1967; A Nova Literatura-II Poesia, Assis Brasil (A tradição da Imagem). CEA/MEC, 1975; Oficina da Palavra – Ensaio intertextual, Ivo Barbieri (contracapa: Haroldo de Campos). Rio de Janeiro, 1979; Tradição & Modernidade em Mário Faustino, Albeniza de Carvalho e Chaves (tese de Mestrado em teoria literária). Piaui, UFPA 1986; Mário Faustino ou a importância órfica, Haroldo de Campos. Caderno de Teresina, Ano I, nº1, abril, 1987; Uma peça na construção da Modernidade, Antônio Manoel Nunes. Rio de Janeiro, Jornal do Brasil (Ideias Ensaios), 7 de janeiro, 1990; Mario Faustino, J. L. Grunewald. Folha de São Paulo, 2 de dezembro, 1992; Literatura Piauiense no Vestibular, Alcenor Candeira Filho. Parnaíba-Piaui,1995; Poesia de Mão dupla, Benedito Nunes. Salvador, Exu Documento – Fundação Casa de Jorge Amado, 1997; Mário Faustino, poeta e crítico subestimado, Carlos Frydman. São Paulo, O Escritor, fevereiro, 1998; O poeta Mário Faustino, GILFRANCISCO. Aracaju, Jornal da Cidade, 25/26 de dezembro, 2003; Republicado: Rio de Janeiro, Poiésis nº 123, junho, p. 6/7, de 2006; e www.cronopios (2006).

 




GILFRANCISCO: jornalista e escritor, membro dos Grupo Plena/CNPq/UFS e do GPCIR/CNPq/UFS.
Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Sergipe gilfrancisco.santos@gmail.com

NOTAS:

1 - Mário Faustino, Poesia-Experiência. São Paulo, Editora Perspectiva, coleção Debate, nº 136, p. 279, 1977.

2 - Haroldo de Campos, Salvador, Exu Documento, Fundação Casa de Jorge Amado,

3 - Benedito Nunes, Poesia de Mão Dupla. Salvador, Exu Documento, Fundação Casa de Jorge Amado, 1997.

MERO DA SOMBRA DA PEDRA


Exemplar da espécie: mero

Thiago Fragata* 


Esse texto desvela uma lenda de São Cristóvão que registrei há alguns anos, nas pesquisas de campo. Coletar estórias do povo, assim nasceu o folclore em meados do século XIX, na Europa. Folclore é um neologismo, termo inventado pelo arqueólogo britânico Willian Jonh Thoms, para designar o conhecimento popular. No artigo publicado em 22 de agosto de 1846, folklore aparece como junção de folk (povo) e lore (sabedoria) para definir o conjunto de manifestações que simbolizam a cultura popular e, por conseguinte, refletem sua identidade. 
 
Na segunda metade do século XIX, intelectuais inspirados no romantismo inventaram narrativas embasadas no folclore para desvendar o passado. Severiano Cardoso e Manoel dos Passos de Oliveira Telles, por exemplo, foram intelectuais que, inspirados na sabedoria popular buscaram em São Cristóvão, antiga capital, respostas as suas pesquisas acerca da história de Sergipe. O rico patrimônio cultural da “cidade-mãe”, fundada no final do século XVI (1590) é prenhe de possibilidades encantou os pesquisadores. Vejo nos seus esforços uma espécie de “consulta ao oráculo de Delfos”, da Grécia antiga, as tantas escaramuças ou perquirições realizadas. O primeiro revelou Rita Cacete, o segundo conheceu pessoalmente João Bebe-Água; nenhum deles tratou da sombra da pedra... 
 
Na minha juventude em São Cristóvão, idos de 1985, aprendi a consertar “motores de rabeta” com o meu pai, o popular Tiago do Gelo, proprietário de barcos e redes. Uma queixa recorrente dos pescadores era a “sombra da pedra”, localizada próximo ao Porto das Pedreiras. Demorei decifrar esta enigmática expressão dita com agouro. Vamos a exegese: 
 
PEDRA - Hoje tenho uma imagem definida do rochedo, uma base brocada visível nos períodos de calmaria quando a água revela a silhueta de batismo. Uns falavam da sombra da pedra como sinônimo de prejuízo, porque a rede que se prendia em suas paredes de cascalho não se resgatava. Linhas e anzóis sem conta perderam-se e ornamentavam o rochedo há uns 10 metros de profundidade. Outros falavam daquele lugar como ponto piscoso. Razões para evitar a pesca nas proximidades da sombra da pedra todos tinham. O número de “mipas” (pescaria sem peixe) constituía-se um problema que definia a possibilidade de risco que um dono de rede poderia considerar. Independente de qualquer coisa, a pescaria farta seria certa aos que manejassem cautelosamente as armadilhas a sua volta. No entanto, alguém sempre lembrava de um fulano ou beltrano que sumiu na sombra da pedra, mergulhou e nunca emergiu... 
 
A SOMBRA - A sombra da pedra não era a única coisa que atemorizava os trabalhadores do mar, naquelas águas aparentemente residia um mero. Mil estórias ainda ecoam nos meus ouvidos sobre a fantástica criatura. O nome científico do bicho é Epinephelus Itajara. Itajara é um termo tupi que significa "senhor da pedra" (itá, pedra + iara, senhor). Esse animal marinho vive nos oceanos Atlântico e Pacífico. Entre suas características, destacam-se a longevidade - pode viver até 40 anos! - e sua capacidade de se camuflar no seu habitat: as pedras. 
 
Eureka! O peixe era a sombra! Dos causos contados pelos pescadores uma unanimidade, todos disseram que a sombra de um peixe gigante na superfície d’água, bem próximo a tal pedra, explicava a origem do nome. Após descrever o exemplar da megafauna marinha, um deles acrescentou: “E quando passou ao lado da canoa, deu para avistar ostras no seu costado, por pouco não virou meu barco.” Boa parte dos relatos sobre o mero exageram o seu tamanho e o caracteriza “velhaco” por duas razões: consegue escapulir de armadilhas, é um predador oportunista – surpreende suas vítimas. O serranídeo, animal da mesma família das garoupas e do badejo, pode atingir 2,7m de comprimento e pesar 450kg! 
 
Faz tempo, ninguém fala do gigante marinho que habitava a região onde o rio Paramopama deságua no Rio Vaza-barris, no povoado Pedreiras. Sumiu, ficou apenas o cenário. Será que alguém capturou o peixe velhaco ou ele encantou-se?”. Os que insistem na sua existência apresentam a maior prova: o lugar onde fica a sombra da pedra. 
 
*Thiago Fragata é professor, historiador e multiartista. Texto integra o inédito Cronicário das memórias – São Cristóvão/SE. Texto publicado no JORNAL DA CIDADE. Aracaju, ano LV, n, 15.414, 30/8 a 1/9/2025, p. 2.

UM JARDIM BOTÂNICO EM SÃO CRISTÓVÃO

No detalhe do mapa, centro, lemos JARDIM BOTTÂNICO e PRATA
 
 Thiago Fragata*

Qual o lugar exato onde funcionou o antigo Jardim Botânico de São Cristóvão? A questão partiu do saudoso amigo Professor Soutelo (1949/2022), durante uma visita de cortesia ao seu gabinete na Biblioteca Pública Epifhânio Doria, idos de 2004. Havia iniciado a produção acadêmica sobre São Cristóvão, como aluno de História, e demonstrava grande entusiasmo em pesquisar minha cidade natal quando firmei amizade com ele, Luiz Fernando Ribeiro Soutelo, intelectual de grande conhecimento acerca da História de Sergipe. Recordo que, na ocasião, o amigo abriu uma cópia ampliada do mapa de Pinxit Gonnet, de 1826. Então apontou seu indicador para expressão Jardim Bottanico, na área correspondente a capital da província. (1) Como já embalava a empáfia de topar desafios, falei na despedida que se o jardim botânico existiu com certeza localizaria. Nesse texto desvelarei o caso sherlockiano.

Quatro anos depois, 2008, encontrei o lugar onde funcionou o Jardim Botânico de São Cristóvão: Mata da Prata, no bairro Jardim, da Cidade Baixa. Verdade que a toponímia (nome do lugar) deu uma ajudinha. De visita ao meu pai, no bairro Avenida, realizei caminhada para o famoso banho na bica da pratinha, afim de rememorar tempo de menino. Então bati os olhos na placa RUA DO JARDIM, daí pensei “rua de acesso ao jardim”, lancei novo olhar por cima dos telhados e avistei palmeira imperial com palhas acenando na força do vento. Fui tomado por uma certeza inquebrantável, abandonei hipóteses. Tudo por conta desse alinhamento de informações.

A palmeira real vislumbrada naquela tarde, tinha uns 25 metros de altura, foi cortada tempo depois, um crime. Pouca gente sabe mais a espécie não é da região, nem mesmo desse país.  Ela pode atingir 50 metros de altura. Originária das Antilhas, é também conhecida como Palmeira Caribenha e Palmeira Real Sulamericana. D. João VI plantou, em 1809, a primeira palmeira trazida das Antilhas, no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Batizada com o nome de “Palma-Master" ela findou-se em 1972 (por conta de um raio), 163 anos depois! Atente a longevidade da espécie, ou seja, possivelmente aquela palmeira que “acenou pra mim” era do tempo do Jardim Botânico de São Cristóvão! Será?!

Não recordo como meu “achado” repercutiu na Secretaria Estadual do Meio Ambiente (SEMARH), que logo orientou manter caso em segredo. A Mata da Pratinha era de propriedade particular, daí que sua liberação visando um projeto de interesse público demandaria possível negociações sem o alarde do valor histórico. O Governador Marcelo Deda gostou da novidade e logo abraçou projeto que envolveu dois políticos de São Cristóvão, Wanderlê Dias Correia e Marcos Santana de Azevedo, ambos com passagem pela SEMARH. Os estudos técnicos do setor ficaram com Valdineide Santana, quem compartilhei toda a minha pesquisa.

O antigo Horto ou Jardim Botânico de São Cristóvão, capital da Provincial de Sergipe, foi um projeto do Governo Manuel Clemente Cavalcante de Albuquerque, inaugurado em 1824. Naquele contexto, a orientação emanada do governo imperial repetiu-se em Minas Gerais, São Paulo, Bahia e Pernambuco. Dotar as capitais dessas instituições era mais que equiparar-se ao Rio de Janeiro, capital do Império, em modernidade e requinte.  Havia também um interesse econômico estratégico de pesquisar e produzir espécies, especiarias, por exemplo. Imagine que Inglaterra dominava a produção e o comercio mundial de chás. Sim, o jardim Botânico de São Cristóvão, dedicou-se ao cultivo de ervas para chás. A informação depreendi dos recibos de pagamento de seus trabalhadores.

Essa política de fomento a criação de jardins botânicos na primeira metade do século XIX mascara um interesse econômico do Governo Imperial a medida que incentivava “a transplantação e aclimatação de espécies economicamente valiosas” (2) e prometia aos Presidentes de Província “prêmios e isenções fiscais para os introdutores e cultivadores de plantas de especiarias”. (3) O sigilo dessas experiências governistas ou talvez a brevidade do jardim botânico que outrora existiu em São Cristóvão, na então Província de Sergipe D’El Rey, talvez justifique as raríssimas informações compulsadas.

Na Europa do século XVIII, o caráter utilitarista da natureza havia sido exaltado pelos iluministas, especialmente os fisiocratas que reputavam a agricultura como sustentáculo da economia mercantil. Esse entendimento renovou a ciência e, de certa forma, reorientou as ambições do Estado português que tentou aclimatar e reproduzir especiarias nas colônias. Os trabalhos dos naturalistas Domingos Vandelli (1735-1816) e Manuel Arruda da Câmara (1766-1811) tematizam a criação de jardins botânicos, a transplantação de espécies exóticas e sua relação com as nativas, adaptação a terra, ao clima e a latitude. (4).

Infelizmente, o empreendimento do governo provincial sergipano não prosperou, muito pelo contrário. Ao final do segundo ano, duas tragédias inviabilizaram sua continuidade. Primeiro, uma grande cheia no rio Paramopama levou de enxurrada todas as plantações. Segundo, o Governador Manuel Clemente Cavalcante de Albuquerque, seu principal incentivador, faleceu, em 2 de novembro de 1826.

Por ironia ou coincidência, a morte do Governador Marcelo Deda, em 2 de dezembro de 2013, encerrou o projeto da retomada do antigo Jardim Botânico de São Cristóvão. Essa é minha avaliação. Eu havia abandonado as discussões do grupo de trabalho misto, que envolveu professores da Universidade Federal de Sergipe, quando decidiram que o novo jardim botânico de Sergipe não seria mais na Mata da Pratinha em razão das fatídicas cheias de inverno, mas nas imediações do rio Pitanga. Hoje, a Mata da Pratinha continua a servir a comunidade seja com seu manancial de águas límpidas, seja com uma natureza exuberante e aprazível. Ela esconde no solo, um patrimônio natural que remonta o Jardim Botânico além de ruinas de barragem e canalização de águas que serviu a antiga Fábrica Sam Christovam.

 

*Texto dedicado ao amigo LUIZ FERNANDO RIBEIRO SOUTELO (1949-2022) 

 


*Thiago Fragata é professor, historiador e multiartista. Texto integra o inédito Cronicário das memórias – São Cristóvão/SE. Publicado no JORNAL DA CIDADE. Aracaju, 19 de agosto de 2025, p. 2. E-MAIL thiagofragata@gmail.com

Fontes da pesquisa: 1 - PRADO, Ivo do. A Capitania de Sergipe e sua ouvidorias: memoria sobre questão de limites (Congresso de Bello Horizonte). Rio de Janeiro: Papelaria Brazil, 1919; 2 - PRESTES, Maria Elice Brzezinski. A investigação da natureza no Brasil colônia. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2000, p. 122; 3 - ALMEIDA citado por PRESTES, obra citada, p. 122; 4 - PRESTES, obra citada. O “Discurso sobre a utilidade da instituição de jardins botânicas nas principais provinciais do Brasil”, de Manuel Arruda, foi publicado em 1810.




UM EXTINTO QUARTEL MILITAR EM SÃO CRISTÓVÃO

 

Antigo Palácio Provincial servindo de quartel, 1930?

 Thiago Fragata*

 Clodomir Silva (1892 - 1932) publicou o incontorável Álbum de Sergipe (1920) num momento festivo do centenário da emancipação política de Sergipe da Bahia; também, Minha gente: costumes de Sergipe” (1926) focado no povo, nos costumes e marcas da sergipanidade. Nesse último, coletei a primeira pista de um quartel militar de São Cristóvão, extinto em fins do século XIX. Retirar do limbo o prédio é o esforço deste escriba. No texto “Por amor de Dona Úrsula”, Clodomir Silva destaca os rigores dos castigos implementados por um certo coronel contra seus subordinados, então refere-se à “rua do quartel”. (1) A toponímia tem dado um contributo importante aos pesquisadores diante da ruína de prédios (arquitetura) que cederam ao tempo e descuido dos seus proprietários. A mudança de nome de ruas, bairros e até cidades já ocorria no tempo do Brasil Imperial, na era republicana tornou-se recorrente. A tônica era batizar ruas com nome de pessoas, lideranças políticas, mesmo vivas. Em 1914, os vereadores de São Cristóvão cogitaram mudar nome das 3 praças principais (Carmo, Matriz e São Francisco) para Apulcro Mota, Pereira Lobo e Siqueira de Menezes! Consultei o absurdo no Arquivo da Prefeitura da cidade, isso nos idos de 2006. Foi nessa ocasião que recolhi outra valiosa informação: “A antiga rua do quartel, hoje faz parte da rua Coronel Erondino Prado”

Não tenho a data exata da fundação do referido quartel militar de São Cristóvão. Serafim Santiago aponta 1816. Expõe que neste ano foi construída “uma caza de pedra e cal, térrea com 10 braças de frente e outras tantas de fundo sitia no luar da Egreja do Senhor das Misericórdias (...) que serve de quartel”. (3) Sebrão Sobrinho informa que foi em 1818 que Antônio da Costa Mendes doou casa para instalação do quartel. (4)

A respeito da localização do prédio, avalizamos que tanto a capela do Senhor das Misericórdias como o Teatro,  igualmente extintos, eram vizinhos do quartel. Como endosso, vejamos o que diz Serafim sobre um passeio melancólico no centro da ex-capital em fins do século XIX, acompanhado por um velho amigo: na extinta rua das Candeias “pararam onde houve no tempo da Capital o começo do Theatro pertencente a Sociedade Philodramatica; alguns passos adiante pararam no local onde tinha sido o quartel militar (5) Ainda sobre a localização do quartel: Divide ao norte com terras  de São Francisco; ao Sul com terras do Senhor das Misericórdias; á Leste com terras do finado Manoel dos Santos Ritta e ao Oeste com a caza do finado Antônio Costa Ferreira (6) Em 1834 tomou posse Dr. Jose Joaquim Geminiano de Moraes Navarro, como Presidente da Provincia de Sergipe, o qual tratou de retificar o sobredito quartel militar dando-lhe melhor forma, commodidade e formoseamento”. (7)

O abandono a que foram relegados alguns prédios públicos após o advento da Mudança da Capital, em 17 de março de 1855, foi anotado por Serafim Santiago e Manoel dos Passos de Oliveira Teles. Foi o caso do citado quartel. Para Serafim Santiago muito se deu pelo “desleixo da Camara Municipal de São Christovão e negligencia de muitos dos meus patrícios (...) Os governos, daquela data em diante, não ligarão mais importância aos prédios ali existentes e pertencentes a Nação (...) os governos consentiram arruinar-se o Palácio [atual Museu Histórico de Sergipe] que outrora servia para residência dos Presidentes da Província (...) Este Palacio que serviu de aposento a S.M. o Imperador [D. Pedro II] (...) Eles consentiram arruinar-se o  Quartel Militar e finalmente, sem embargos de autoridade alguma, foi este edifício aos poucos demolido ainda em estado de conservação, em vez de um pequeno reparo”. (8) Sua demolição deu-se no início da década de 1890, aproximadamente.

Desprovida de Força Policial por conta do seu deslocamento para nova capital Aracaju, em 1855, a cidade sediou um Corpo de Linha em lugares diversos, sendo que em alguns anos o regimento foi destituído por decisão do Presidente, alegando contingenciamento e falta de efetivo. Alguns prédios do centro histórico que cumpriu o papel de sede militar por conta da presença de uma Força Militar, ainda que por pouco tempo, foram: o Sobrado da Câmara e Cadeia, localizado na Praça da Matriz; Antigo Palácio Provincial, atual Museu Histórico de Sergipe, localizado na Praça São Francisco. Manoel dos Passos de Oliveira Teles conta que a “maior adversidade foi o aquartelamento do segundo corpo policial de segurança no convento da Misericórdia” (9), em 1895, por imposição desmandos de coronel Manuel Prisciliano de Oliveira. A Misericórdia que ele fala é a Santa Casa de Misericórdia que também fica na Praça São Francisco e, atualmente, abriga a Prefeitura Municipal.

O tempo e o descaso do poder púbico figuram como vilões da salvaguarda dos monumentos. Uma política nacional de preservação do patrimônio cultural surgiria com a Superintendência do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN, depois IPHAN), autarquia federal, em 1937, e ainda assim, o diverso patrimônio cultural esboroa como o velho quartel de São Cristóvão. 

 

*Thiago Fragata é historiador, escritor e multiartista E-mail: thiagofragata@gmail.com

Texto publicado no JORNAL DA CIDADE. Aracaju, 9 a 11/8/2025, ano LV, n. 15399, p. 5.

 

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 1 - SILVA, Clodomir. Minha Gente: costumes de Sergipe. 3ª Ed. Aracaju: J. Andrade, 2003, p. 51; 2 - SOBRINHO, Sebrão. Laudas para História de Aracaju. 2ª. Ed. Aracaju: Gráfica J. Andrade, 2005, p. 358-359; 3 - SANTIAGO, Serafim. Annuario Christovense ou Cidade de São Christovão. São Cristóvão: Editora UFS, 2009, p. 76; 4 - SOBRINHO, Sebrão. Laudas para História de Aracaju. 2ª. Ed. Aracaju: Gráfica J. Andrade, 2005, p. 360-361; 5 – A Capela das Misericórdias e o referido teatro não existem mais existem SANTIAGO, Serafim. Obra citada, p. 115-116; 6 - SANTIAGO, Serafim. Obra citada, p. 76, 7 – idem; 8 - SANTIAGO, Serafim. Obra citada, p. 108; 9 - MECENAS, Ane; SANTOS, Magno; CARVALHO, Angélica de (org). Ao romper do século XX: o município de São Cristóvão por Manuel dos Passos de Oliveira Telles.  Aracaju: Criação, 2023, p. 122


OS AZULEJOS DE VESTA VIANA


 Thiago Fragata*

Mudei de São Cristóvão para Lagarto em julho de 2019, encerrando 30 anos de atividades na cena cultural da “Cidade-Mãe de Sergipe”, na qual estive envolvido em 3 áreas, basicamente: Educação, Cultura e Turismo. Recentemente, na visita costumeira aos meus pais, fiz um tour nostálgico pelo centro histórico, visitando igrejas e museus, e encerrei a agenda adentrando o prédio do Conselho Municipal de Saúde, localizada numa extremidade da Praça da Matriz. Fui reconhecido pela funcionária que, gentilmente, atendeu meu pedido inusitado: apreciar os azulejos pintados no banheiro. Ao fotografar as 6 obras, verifiquei que em apenas uma delas consta o nome da artista, Vesta Viana. Aposto que os leitores que conheceram de perto a artista e a sua obra nunca ouviram falar daqueles maltratados azulejos.

Quem foi Maria Vesta Viana? No catálogo 2 séculos de Artes Visuais em Sergipe (2008), ela figura como “artista Naif que despertou com sua arte o interesse de personalidades como Jorge Amado e Zélia Gattai”. O ilustre casal de escritores incentivou a carreira da jovem menina sancristovense que conheceram pintando num quintal da casa onde sua mãe Noêmia vendia doces, localizada na rua Santa Cecília, do centro histórico.  Resumo, em dois fatos, o que potencializou o sucesso e o alcance da arte da “artista primitivista”, conforme Jorge Amado publicaria numa edição especial de 1970 da Revista Manchete: Primeiro, o rumoroso sumiço (roubo) do quadro da artista da sala do escritor baiano. Na verdade, uma brincadeira do compadre Dorival Cayme, conforme noticiado pelos jornais cariocas. Segundo, o Festival de Arte de São Cristóvão (FASC), que teve a primeira edição em 1972. Essa edição do FASC elevou aos píncaros a obra da artista Vesta Viana que, tendo o seu nome já firmado na cena cultural, montou um ateliê. E, assim, por duas décadas (1970/1980), seus quadros tematizando casarios e igrejas coloniais, e também paisagens, atraíram uma clientela seleta de famosos marchands  estrangeiros.

Conheci Vesta Viana, salvo engano, em 1988, trabalhando numa repartição instalada naquele prédio. Era a Exatoria. Meu impulso para conhecê-la partiu de uma questão familiar: ela era madrinha do meu pai, o popular Tiago do Gelo. Não me contive com a descoberta, subi a ladeira e fui ao seu encontro. Firmada nossa amizade, fiz cerca de 5 entrevistas, publiquei alguns artigos sobre a sua vida e obra, assessorei algumas matérias para televisão. Ela compartilhou sua coleção de correspondências trocadas com o casal Jorge Amado e Zélia Gattai, bem como seus cadernos de poesias e documentos históricos – a exemplo do “Livro de orações contra a peste (Cólera), de 1856” – e as histórias do seu falecido pai Zeca Viana com dotes de cronista.

É corrente entre nós a obsessão barroca da eternizar as obras de arte, isso para compensar a brevidade da vida.  Sobre os azulejos, tenho algumas sugestões para a sua preservação. Sim, eles perdem pigmento com o passar dos anos, mas é fato que a situação se agravou porque alguém tentou raspá-los com palha de aço na intenção de “limpar” a tinta dos azulejos muito desbotados! Que triste...

Se, porventura, a Prefeitura Municipal de São Cristóvão aceitar sugestões, considero viável a remoção de sujidades e um banho de verniz fixador visando a sobrevida das obras. Posteriormente, o conjunto de azulejos poderia ser removido do banheiro do Conselho Municipal de Saúde, fixado num quadro e doado para algum museu, a Galeria de Artes Vesta Viana, por exemplo. Ou, então, depois da primeira intervenção, o prédio poderia figurar como um “lugar de memória de Vesta Viana”, um espaço para lembrar, (re)memorar ou (co)memorar a presença da grande artista sancristovense.

Maria Vesta Viana, além de artista plástica, era poetisa e pesquisadora da experiência histórica de sua amada cidade. Uma das últimas ações em que esteve envolvida como agente cultural foi na campanha da Praça São Francisco – tantas vezes representada em suas telas! – para receber o selo UNESCO de Patrimônio Mundial em 2010. Por tudo o que fez, pela divulgação do patrimônio cultural de São Cristóvão, seus azulejos merecem um olhar consciencioso. Alguém concorda?

 

*Thiago Fragata é historiador, escritor e multiartista E-mail: thiagofragata@gmail.com 

Texto publicado no JORNAL DA CIDADE, ARACAJU, de 23 de julho de 2025, p. 2. 

 

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

AMADO, Jorge. Salvador-Aracaju: roteiro saboroso para viajantes sem muita pressa. Revista Manchete (edição especial), São Paulo, outubro, 1970, p. 144.

CHOU, José Walter Teles et al. Dois Séculos de Artes Visuais em Sergipe. Aracaju: Sociedade Semear, 2008, p. 86.

 

 

O POETA MÁRIO FAUSTINO

  Mário Faustino                                                                          POR GILFRANCISCO*     Crítico exclusivo de poe...