![]() |
Aurora, criança autista, tem hiper-sensibilidade auditiva |
Thiago Fragata*
Em todo réveillon e festa junina retoma-se a pauta do uso de fogos silenciosos em detrimento dos fogos barulhentos. Há quem vaticine com estardalhaço o fim dos festejos juninos e/ou o fim da indústria nacional de fogos e pirotecnia. Não vou “soltar” o verbo agora, meu rojão de pai atípico (tenho duas filhas autistas), contextualizarei o caso à luz dos últimos acontecimentos no circuito político, em algumas casas legislativas.
No dia 6 de maio, o Deputado Estadual Georgeo Passos (Cidadania) ocupou a tribuna da Assembléia Legislativa de Sergipe para cobrar tramitação de Projeto de Lei 406/2021, de sua autoria, que trata da proibição de fogos barulhentos em Sergipe. Diante da morosidade observada na ALESE, algumas cidades ditaram restrições amparadas no parecer jurídico do Supremo Tribunal Federal (STF), que reconheceu a competência dos municípios para legislarem sobre o tema, por envolver saúde, segurança e meio ambiente.
Nossa Senhora de Socorro, por exemplo, proibiu a queima, soltura e manuseio de fogos de artifício e artefatos pirotécnicos com estouro em toda a cidade, conforme Lei Municipal nº 4.269/2020. Em Itabaiana, o Projeto de Lei nº 91/2025, votado no dia 24 de maio, de autoria do presidente da Casa, Breno de Vardo (PL), proíbe o uso, manuseio, queima e soltura de fogos de artifício com estampido e outros artefatos pirotécnicos com efeito sonoro ruidoso. Recentemente, a prefeita de Nossa Senhora da Glória, Luana Michele, sancionou a Lei Municipal nº 1.286/2025, seguindo a tendência.
Nos Estados nordestinos onde os festejos juninos revestem-se de tradição secular que perpassa gastronomia, dança, música, brincadeiras e, dentre estas, a soltura de fogos, a questão ainda não gerou “barulho”, digo, um conflito de interesses: de um lado figuram os propositores da extinção dos fogos de estampido (ao menos a redução dos decíbeis), são eles: parlamentares, simpatizantes, parentes, representantes dos pcd’s, causa autista, recem-nascidos, idosos e acamados em leitos hospitalares, ongs que defendem o direito animal, dentre outros; do outro lado, destacam-se os propositores de alternativas em razão de possivel crise da industria da pirotecnia; também da ameaça da descaracterização de tradição patrimonializada do saber-fazer (artesanato), enfim, da cultura popular.
![]() |
fogos barulhentos geram desconforto e pode matar animais |
O cenário acima foi desenhado a partir da repercussão de proposituras de alcance nacional a respeito da proibição de fogos de estampido que tramitam no Senado Federal e na Camara Federal dos Deputados. Refiro-me ao Projeto de Lei (PL 5/2022), do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e do Projeto de Lei (PL 439/2021), do senador Fabiano Contarato (PT-ES). Sendo que a PL 5/2022 já foi aprovada pela Comissão de Educação (CE) e na CCJ, onde ficou estabelecido proibição e a fabricação, o armazenamento, a comercialização e o uso de fogos de artifício que produzam barulho acima de 70 decibéis. Hoje, a PL se encontra na Câmara dos Deputados. Nesta, Ricardo Izar (PP/SP) aprovou seu Projeto de Lei 6881/2017, na Comissão de Meio Ambiente, em 2019, que proíbe fogos de artificio com estampido. Atualmente, projeto tramita na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). Recentemente, CCJC, devolveu o PL 380/2022, do deputado Federal Euclydes Petterssen (PSC/MG), que dispõe sobre restrições aos fogos barulhentos.
Isso posto, não é por falta de proposituras que o tema não avança nas mesas institucionais, parece um esforço de Sísifo, fazer rolar grande bloco de pedra montanha acima até o Gabinete do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O decreto presidencial não sairá antes de avaliar o impacto disso na industria nacional de fogos. E, se a proibição de fogos de artificio não resolver a questão central, visto que a produção e o comercio clandestino vicejam apesar da legislação em vigor? E se o polo industrial de fogos, sediado em Minas Gerais, não sobreviver a nova configuração de mercado ou concorrência de produto estrangeiro?
Todos os anos, no período junino, muitos acidentados dão entrada no ala de queimados dos hospitais. Infelizmente, parecem fracassar as campanhas de conscientização sobre cuidados básicos, a exemplo de não manusear fogos se tiver consumindo bebidas alcoolicas ou, se não tiver equipamento de segunrança recomendado; fracassa sempre a fiscalização que poderia impedir crianças e adolescentes de comprarem fogos em qualquer mercearia ou barraca montada na esquina.
Voltando ao cerne da questão, a proibição de fogos de estampido visando proteger a comunidade PCD, idosos, enfermos em leitos hospitalares, também animais silvestres e domésticos, precisamos gritar que fogos barulhentos representam sofrimento. Faltará gestão humanizada, se o poder público realiza ou incentiva eventos onde o espetáculo da queima de fogos figura como diversão ainda que no esteio da tradição.
Para Guilherme Santos, da Aliança Brasileira de Pirotecnia, a solução viável seria a distribuição de abafadores, a conscientização da sociedade sobre respeito e áreas seguras, bem como construção de espaços destinados exclusivamente a queima de fogos e shows pirotécnicos. Aqui em Sergipe, quantas cidades criaram espaços exclusivos para queima de fogos com segurança? Qual a ação do Ministério Público Estadual e Corpo de Bombeiros perante a inoperância das gestões municipais?
Enfim, sadismo é sentir prazer provocando a dor alheia. O sadismo em pauta reside no descaso das instâncias de poder diante do tema, na morosidade até alguma resolução, na falta de empatia pela luta humanitária, enfim, na omissão daqueles que deveriam zelar pelo bem-estar de toda a sociedade. Se não for possível promover a inclusão nos festejos juninos ao menos garanta a paz aos vulneráveis. O mais irônico de tudo é que na origem dos fogos de artifício, antiga China, o espetáculo era apenas visual.
*Thiago Fragata - é pai de crianças autistas, professor, especialista em História Cultural pela UFS. Texto publicado no JORNAL DA CIDADE. Aracaju, Ano LV, N. 15368, 26 de junho 2025, (OPINIÃO). E-mail: thiagofragata@gmail.com