NO PRÓXIMO VAPOR - II*

Aurélia Dias Rollemberg (Dona Sinhá), déc. 1950
 



Samuel Barros de Medeiros e Albuquerque**

No domingo retrasado, voltamos ao longínquo século XIX e, na manhã de 10 de março de 1879, embarcamos com o Barão de Estância e seus acompanhantes rumo à capital do Império do Brasil. Eis, agora, uma questão: como foi possível reconstituir o percurso daquela viagem oitocentista entre Aracaju e o Rio de Janeiro?

A resposta não carece de rodeios. A reconstituição foi possível graças à sobrevivência de manuscritos e impressos produzidos no Brasil do século XIX ou legados por mulheres e homens que aqui viveram entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX.

E quais seriam esses documentos? O primeiro e mais importante é o texto de memórias de Aurélia Dias Rollemberg (1863-1952), nome de casada da filha mais velha do Barão da Estância com dona Lourença de Almeida Dias Mello.

Como havíamos registrado, as sinhazinhas Aurélia e Anna acompanharam seus pais na viagem de 1879. Décadas depois, no gabinete de leitura do memorável casarão da Rua Boquim, no centro de Aracaju, a viúva do senador Gonçalo de Faro Rollemberg (1860-1927) registrou suas reminiscências sobre o Rio oitocentista em uma pequena caderneta escolar. Esse documento, produzido entre 1927 e 1952, foi editado em 2005, na obra Memórias de Dona Sinhá, e o manuscrito original foi incorporado ao acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, através de doação feita pelos herdeiros do médico Lauro de Britto Porto (1911-2011). Assim, o texto de memórias de Aurélia sobreviveu e pode ser consultado em sua versão impressa ou manuscrita [1].

No Arquivo Público Estadual de Sergipe, localizamos os registros de saída de embarcações no porto do Aracaju relativos ao ano de 1879. Nesse sentido, o volume 21 do Fundo Segurança Pública registra a saída, em 10 de março, do vapor nacional Marquês de Caxias para o porto da Bahia [2]. Como havíamos mencionado no texto anterior, foi neste vapor da Companhia Baiana de Navegação que os viajantes sergipanos seguiram até Salvador, antes de tomarem o vapor estrangeiro que os conduziria até o Rio.

Por fim, a edição de 16 de março do jornal baiano “O Monitor” veiculou o seguinte registro: “[Ontem], no vapor allemão Valparaiso foram para Santos pelo Rio de Janeiro os seguintes [passageiros]: Manuel de M. e Souza sua senhora, 1 criada e 2 crianças, Barão da Estancia sua senhora, 2 filhas e 4 criados, Antonio da M[otta] Ribeiro e 4 criados, Chr. Retberg, Eleodoro J. de Campos, Dr. Pedro J. Pereira” [3].

Para além das fontes que nortearam, principalmente, a reconstituição do percurso, dialogamos com outros documentos [4] e estudos [5] sobre o Brasil oitocentista, que lançaram luzes sobre os cenários estudados. Exemplo disso são as cartas de preceptora alemã Ina von Binzer, que narram suas experiências enquanto preceptora de famílias fluminenses e paulistas em princípios da década de 1880. Esses documentos foram publicados na Europa em fins da década de 1880 e no Brasil, somente, em meados da década de 1950 [6]. Ina registrou com riqueza de detalhes, por exemplo, suas primeiras impressões sobre a região portuária e o centro do Rio de Janeiro oitocentista.

Longe de querer vomitar erudição em plena viagem marítima, considero tarefa básica no ofício do historiador indicar as fontes que dão vida às suas narrativas. Por mais que devamos primar por uma escrita historiográfica convidativa, julgo importante realçar a tênue linha que separa História e Literatura. (Continua)




* Publicado no JORNAL DA CIDADE. Aracaju, 16-17/11/2014, p. CA - 7. A fotografia que ilustra este artigo retrata Aurélia Dias Rollemberg (Dona Sinhá) em princípios da década de 1950 (Acervo particular de Ruth Rollemberg da Fonseca Mandarino).

**Professor da UFS e presidente do IHGSE. E-mail: samuel@ihgse.org.br
NOTAS
[1] A referência completa da versão impressa é: ROLLEMBERG, Aurélia Dias. O documento. In: ALBUQUERQUE, Samuel Barros de Medeiros. “Memórias de dona Sinhá”. Aracaju: Typografia Editorial, 2005. p. 47-123. Por sua vez, o documento original possui a seguinte referência: ROLLEMBERG, Aurélia Dias. [Texto de memórias]. Aracaju, [entre 1927 e 1952]. Acervo do IHGSE;
[2] REGISTROS de saída de embarcações no porto de Aracaju em 1879. Arquivo Público Estadual de Sergipe, Fundo SP8 - Inspetoria da Polícia (Marítima e Aérea), volume 21, p. 197 (reverso);
[3] NOTÍCIAS diversas. “O Monitor”, Bahia, 16 mar. 1879, p. 1.
[4] Em termos documentais, fiz uso de: AVÉ-LALLEMANT, Robert. Excursão à província de Sergipe. “Revista do IHGSE”, Aracaju, v. 21, n. 26, 1961; DIÁRIO do imperador D. Pedro II na sua visita a Sergipe em janeiro de 1860. “Revista do IHGSE”, Aracaju, n. 26, p. 64-78, [1965]; MACEDO, Joaquim Manoel de. “Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro”. Tomo Primeiro. Rio de Janeiro: Typ. Imparcial de J. M. Nunes Garcia, 1862; _____. “Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro”. Tomo Segundo. Rio de Janeiro: Typ. de Candido Augusto de Mello, 1863; SANTOS, Luiz Álvares dos. “Viagem Imperial á Provincia de Sergipe”. Bahia: Typographia do Diario, 1860; 
SCHRAMM, Adolphine. “Cartas de Maruim”. Aracaju: Núcleo de Cultura Alemã de Sergipe/UFS, 1991.
[5] Em termos bibliográficos, fiz uso de: ALMEIDA, Maria da Glória Santana de. “Sergipe: fundamentos de uma economia dependente”. Petrópolis: Vozes, 1984; _____. “Nordeste açucareiro”. Aracaju: UFS/SEPLAN/BANESE, 1993; CARVALHO, José Murilo de. “A construção da ordem & Teatro de sombras”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003; FIGUEIREDO, Cláudio; SANTOS, Núbia Melhem; e LENZI, Maria Izabel Ribeiro (Organizadores). “O porto e a cidade”. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005; FREYRE, Gilberto. “Modos de homem e modas de mulher”. Rio de Janeiro: Record, 1987; NUNES, Maria Thetis. “Sergipe Provincial II (1840/1889)”. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Aracaju: BANESE, 2006; PASSOS SUBRINHO, Josué Modesto dos. “História econômica de Sergipe (1850-1930)”. Aracaju: Programa Editorial da UFS, 1987; ROSADO, Rita de Cássia Santana de Carvalho. “O Porto de Salvador, modernização em projeto, 1854-1891”. Salvador: EdUFBA/CODEBA, 1983; SCHWARCZ, Lilia Moritz. Cultura. In: SILVA, Alberto da Costa e (Coordenação). “Crise colonial e independência: 1808-1830”. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011. (História do Brasil Nação: 1808-2010, 1).
[6] BINZER, Ina von. “Alegrias e tristezas de uma educadora alemã no Brasil”. São Paulo: Anhembi, 1956.

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