ANEDOTÁRIO DE SÃO CRISTÓVÃO I - A FORCA

Praça São Francisco, imagem de 1920.

José Thiago da Silva Filho*

Minha curta experiência na gestão do Museu Histórico de Sergipe já rendeu além de trabalho, algumas produções acadêmicas, intervenções artísticas na comunidade, pleitos de reconhecimento e muitos causos para animar a velhice. A este respeito observo que na maioria das cidades coloniais brasileiras quatro estórias alimentam a mitologia, o folclore e o bolso de conversadores que se intitulam guias de turismo; são elas: aqui tem passagens (túneis), aqui teve forca, aqui tem botija enterrada, tem fantasmas!

Essas estórias integram um repertório de levar ao êxtase qualquer platéia senão pela veracidade do conteúdo ao menos pelo riso. Fiz destas preciosidades – ou seriam preciosismos? - objeto da palestra “O anedotário de São Cristóvão” no ano passado. Em alguma cidade colonial, talvez, uma ou outra destas fantasias ocorram; hoje sabemos dos casos de botija, por exemplo, que endossaram generalizações as mais absurdas. Vejamos o caso da forca de São Cristóvão. Todos os visitantes que na infância conheceram o prédio do Museu Histórico de Sergipe na função de Sindicato dos Trabalhadores da Industria Têxtil, entre os anos de 1949 e 1954,  perguntam pela “pedra da forca” que ficava guardada numa das salas. Assim fez no sábado, 19 de julho, o visitante José Juarez Leite, 75 anos, que estudou na Escola Operária Barão de Mauá. Pelo seu depoimento a escola era uma sala de aula em que a turma era composta por filhos de operários e as aulas eram ministradas pela professora Arasceles Rodrigues Correia. (1)

Sabemos que até os anos de 1940 havia um pedestal quadrangular próximo ao cruzeiro da Praça São Francisco. Foi aquele bloco que gerou na verve popular a suspeita da existência da forca na ex-capital. Ali ficaria o cadafalso, o lugar das execuções dos criminosos perante os representantes da justiça e do povo. Infelizmente, das possibilidades aventadas pela minha investigação nenhuma respalda os enforcamentos na praça pública. Então, qual seria mesmo a origem da base pétrea desmontada e recolhida no sobrado do antigo Palácio Provincial?

UM CATAVENTO? - Encontrei a primeira pista numa publicação de 1920, de autoria de Clodomir Silva, intitulada Álbum de Sergipe. A obra que festeja o centenário da Emancipação Política de Sergipe da Bahia (1820/1920) constitui um esforço intelectual de fôlego pois objetiva traçar um panorama histórico, político, cultural, econômico e social dos 34 municípios a época, com um alentado preâmbulo sobre o passado do Estado. Nas duas fotografias das praças (Carmo e São Francisco) vemos cataventos responsáveis pela força eólica a bombear água para servir a população.(2) Como nos dois casos os beneficiados eram especialmente os religiosos, considero possível que esta melhoria faça parte das ações desencadeadas com a chegada dos franciscanos em 1906. o que é certo afirmar é que a instalação de cataventos na cidade deu-se no início do século XX.

Durante a primeira etapa da organização do Arquivo Municipal de São Cristóvão em 2006, encontrei um documento valioso sobre o assunto. No Livro de Atos do Governo Municipal de São Cristóvão (1904 e 1930), verso da página 18, o secretário Umbelino Pereira transcreve ofícios endereçados ao Intendente de Lagarto, com cópia ao padre Possidônio Pinheiro da Rocha, daquela paróquia, datada de fevereiro ou março do ano de 1929. Lemos o conteúdo: “Sciente essa Intendencia que se acha ahi na cidade de Lagarto parte no mercado público e parte em uma igreja peças de um catavento que pertence a intendência municipal d'aqui indo parar ahi conforme informações colhidas de pessoas que sabem do cazo por empréstimo feito pelo Doutor Graccho Cardoso ao Reverendo Possidônio e actualmente temos precisão do dito chafariz venho solicitar officios de V. Sa. a fim de ser entregue pela intendencia d'ahi ou por quem esteja de posse aguardando vossa resposta afim de mandar reconduzir para aqui”.(3)

Atente que ele implora a atenção do intendente da cidade de Lagarto e do seu pároco para resolver um problema: “precisão do dito chafariz”. Fato é que até os idos de 1980, o centro histórico de São Cristóvão possuía vestígios de pelo menos 3 chafarizes, hoje ausentes da paisagem assim como os antigos cataventos que na carta citada aparecem como sinônimos.

Diante das poucas provas amealhadas, não tenho a certeza dos ex-alunos da escola do sindicato instalado no antigo sobrado, hoje Museu Histórico de Sergipe, sobre a pedra da forca. Eles ainda falam com um olhar carregado de espanto sobre o assunto que envolve assombrações do prédio, os fantasmas que arrastavam correntes pelos corredores, almas penadas. (continua)



* José Thiago da Silva Filho (ou Thiago Fragata) é historiador e poeta; especialista em História Cultural pela UFS; sócio do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGSE), membro do Grupo de Pesquisa Culturas, Identidades e Religiosidades (GPCIR/CNPq); Diretor do Museu Histórico de Sergipe (MHS/Secult). Email: thiagofragata@gmail.com Artigo publicado no JORNAL DA CIDADE. Aracaju, ano XLIII, N. 12620, 2/8/2014, p. B-6.


FONTES DE PESQUISA

1 - Entrevista de José Juarez Leite concedida a Thiago Fragata. São Cristóvão, 19 de julho de 2014.

2 - SILVA, Clodomir. Album de Sergipe (1820/1920). Aracaju: Governo do Estado de Sergipe, 1920, p. 281 e 283.

3 - Livro de Atos do Governo Municipal de São Cristóvão (1904 e 1930). Arquivo da Prefeitura Municipal de São Cristóvão. Manuscrito.

IMAGEM: Praça São Francisco publicada no Álbum de Sergipe, de Clodomir Silva, 1920, p. 283.

Futebol de São Cristóvão é tema de exposição

Industrial Futebol Clube 1966
Em ritmo de Copa do Mundo será lançada na próxima quarta (9/7), às 19:00 horas, a exposição temporária “Futebol em São Cristóvão”, no Museu Histórico de Sergipe, unidade da Secretaria de Estado da Cultura. O evento que tem a realização do Rotary Clube São Cristóvão pretende mostrar a presença da modalidade esportiva desde as primeiras décadas do século XX quando se instalou a fábrica de tecidos Sam Christovam S. A., patrocinadora de time e detentora do principal campo de futebol da cidade.

José Lucio pesquisa futebol em São Cristóvão
O historiador e Presidente do Rotary Clube São Cristóvão, José Lucio Batista Silva Silva, esclarece que a exposição é parte de um projeto maior chamado 'Os esportes em São Cristóvão', que se acha em andamento porque muita gente ainda não foi entrevistada. No momento, iremos expor fotos, camisas, troféus e as entrevistas a fim de que os visitantes possam ouvir as experiências de ex-jogadores do Industrial, Independente, Juventus e outros”. 

CONTE SUA EXPERIÊNCIA COM O FUTEBOL
Como funciona o projeto do Rotary Clube São Cristóvão: jogadores, ex-jogadores, técnicos, donos de time, organizadores de campeonatos contatados concedem entrevista e disponibilizam acervo pessoal (fotos, troféus, camisas, faixas, etc)  para o inventariamento num banco de dados.
 
Mario Sergio foi goleiro no Industrial
Mário Sergio Ferreira aceitou participar do projeto, confira o resumo da sua entrevista: Mario Sergio, como é conhecido, nasceu em São Cristóvão em 1960. Nas peladas do bairro Avenida onde passou a adolescência tinha Jailton, goleiro do Industrial Futebol Clube, como ídolo. Mais tarde se destacaria na mesma função e time. Estudante no Colégio Estadual Senador Paulo Sarazate destacou-se no Campeonato Amador Estudantil, quando foi convidado para integrar a seleção sergipana no Campeonato Brasileiro Juvenil. Mario Sergio foi goleiro do Industrial entre os anos de 1980 e 1987, tendo comemorado 3 títulos com o time. No mesmo período, defendeu o Cotinguiba Esporte Clube no campeonato Estadual. Funcionário da rede bancária integrou diversos times (Murilo Dantas, BBC) a exemplo da equipe do Banese, onde trabalha desde 1997. Com um time de amigos fundou o Gremio, popular Pops, em 1978. Atualmente, integra o time Quarentões. Mario Sergio é torcedor do Botafogo.

AGENDE
O Museu Histórico de Sergipe, instituição educativa comprometida com o patrimônio cultural brasileiro, acolheu a iniciativa do Rotary Clube de São Cristóvão.
O QUÊ? lançamento da Exposição “Futebol em São Cristóvão”
ONDE? Museu Histórico de Sergipe
QUANDO? Quarta-feira, 9/7, 19 horas.

FONTE: BLOG MHS

A TÚNICA III*


Túnica em discussão. Foto: Samuel Albuquerque, 2014


Samuel Albuquerque**

Na semana passada, dialogando com testemunhos legados por Serafim Santiago (1860-1932) e Gumersindo Bessa (1859-1913), lancei a hipótese de que a túnica oitocentista apresentada na exposição temporária “Nos passos do Senhor dos Passos” (aberta ao público no último dia 8 de março, no Museu de Arte Sacra de São Cristóvão) foi doada por Antonio Dias Coelho e Mello (1822-1904), o Barão da Estância, e não por João Gomes de Mello (1809-1890), o Barão de Maruim.

Conforme havia anunciado, passo a outros testemunhos que dão lastro à hipótese que defendo: o texto de memórias de Aurélia Dias Rollemberg (1863-1952) e o testamento do próprio Barão da Estância.

Dona Sinhá, como ficou conhecida a filha do Barão da Estância e viúva do político Gonçalo de Faro Rollemberg (1860-1927), registrou sobre a presença de sua família nas festividades religiosas da antiga capital de Sergipe: “(...) iamos com muitas saudades para S. Christovão, assistirmus a Procissão de Passos [e] S. Sancta, que eram mto bonitas e concorridas” (Rollemberg In: Albuquerque, 2005, p. 53, 56-57).

Em seu testamento, além de declarar-se “firme Catholico Apostolico Romano”, o Barão da Estância deixou uma pequena fortuna para o templo que abrigava a imagem que tanto cultuava. “Deixo a Igreja do Nosso Senhor Jesus dos Passos da Cide de S Christovão huma apolice de hum conto de re de juros a 5% pa com os juros d’esta apolice dever de huma Missa Cantada todos os annos no dia dezignado. Esta apolice ficará em poder do parocho da Freguesia, e qqr q seja o seo [ilegível] tendo o direito de cobrar os juros do anno pa o dia [da] Missa Cantada. Nao poderá em tempo algum passar a outro, e nem ser alienada, salvo se justificar q a Igreja precisa de reparos, e n’este caso poderá ser negociada” , registrou o devoto já moribundo (Barão da Estância, 1904, p. 3).

Outra vontade expressa no testamento do Barão da Estância era a de ser velado aos pés do Senhor dos Passos, sob a casa que ajudou a manter: “Se morrer aqui [em S Christovão] o meo corpo será levado a Igreja do Senhor dos Passos, e lá collocado em huma mesa forrada de preto, sem eça sem aparato algum. Encomendado simploriate plos Frades a São Francisco, será meo corpo conduzido plos meos amigos e parentes pa a Igreja do Colegio na onde serei sepultado” (Barão da Estância, 1904, p. 3-4). Sua vontade parece ter sido cumprida à risca e ainda hoje podemos encontrar a esquecida e maltratada lápide sepulcral do Barão da Estância e de outros membros de sua família (inclusive seus pais, irmãos e sua segunda consorte) no que foi a sacristia da Igreja Nossa Senhora da Guia do Colégio, nos arredores do povoado Nova Descoberta, em Itaporanga d’Ajuda. Aliás, é preciso que se registre o estado lastimável em que se encontram as lápides no interior daquele combalido templo, a despeito de ser ele um bem tombado pelo poder público federal e pertencer a descendentes diretos dos que ali jazem. 

Voltando à túnica em questão, uma fonte que registra sua origem é o depoimento concedido pela memorialista Maria Paiva Monteiro (1913-2004) ao historiador Magno Santos em dezembro de 2003. Considerada “a memória viva de São Cristóvão” (Santos, 2012, p. 12), a professora primária conhecida como dona Marinete era filha de um antigo tesoureiro da Ordem Terceira do Carmo, o senhor Horácio Pio Monteiro (1852-1924), e foi secretária da Associação Nossa Senhora do Carmo, entidade que, nos idos da década de 1970, assumiu muitas das atribuições dos terceiros do Carmo, inclusive a organização das procissões quaresmais. Dona Marinete preservou a memória de que o Barão da Estância teria mandado confeccionar aquela túnica na França, oferecendo-a ao Senhor dos Passos como prova de sua devoção (Santos, 31 out. 2012).

Sobre a memorável Marinete, registrou o historiador: “A trajetória de vida de dona Marinete esteve relacionada com a romaria dos Passos. Mais do que isso. Ela participou ativamente dos bastidores da celebração maior da cidade de São Cristóvão. Ofícios, arrumação das charolas, reuniões de comissões organizadoras, criação de associações, tudo isso ocorreu ao longo do século XX com a presença dessa devota. Prova disso foram as reuniões da década de 70 do século XX em que a devota se tornou testemunha da extinção da Ordem Terceira do Carmo e assumiu o cargo de secretária da nova Associação de leigos criada sob a tutela do arcebispo metropolitano de Aracaju, Dom Luciano Cabral Duarte. Desde a tenra infância dona Marinete esteve presente na vistosa procissão, pois ela era membro de uma família católica da cidade” (Santos, 2012, p. 3)

É preciso mencionar, inclusive, que o primeiro registro historiográfico do qual tenho notícia, tratando da referida túnica, remete ao estudioso das devoções cristovenses que, em fins de 2003, colheu duas longas entrevistas com dona Marinete. Baseando em depoimentos da memorialista, Magno Santos registrou: “A túnica doada pelo Barão da Estância não é mais usada, mas traz em si as marcas de devoção, como o desgaste do tecido em partes em que os romeiros tocavam. O tato devocional passou milhares de vezes pelo manto, em busca de bênçãos, deixando suor, lágrimas e preces. São algumas das facetas da devoção ao Senhor dos Passos, que conseguia unir em um mesmo percurso, sob o mesmo tecido um nobre e tantos flagelados da sociedade aristocrática e excludente de Sergipe oitocentista” (Santos, 2010, p. 164-165). 

Confesso também não acreditar que a finíssima túnica foi confeccionada na França. Considero provável que os materiais e a mão de obra utilizada sejam, realmente, de origem francesa. Contudo, penso estar no atelier de certa madame Laurant, modista francesa estabelecida à Rua do Ouvidor (centro do comércio de luxo no Rio de Janeiro oitocentista), a criação daquela peça.

Conforme os registros de memória de Aurélia Dias Rollemberg, desde fins da década de 1870, a família do Barão da Estância tomou parte no seleto grupo de clientes daquela modista, cujo concorrido atelier ficava sobre a famosa Confeitaria Paschoal, no número 128 da Ouvidor, esquina com Gonçalves Dias.

Madame Laurant aparece em vários momentos da narrativa de dona Sinhá. No primeiro deles, a memorialista registrou: “Ella era uma franceza q fallava o portuguez, delicada e optima modista. Morava com uma filha que ajudava e uma sobrinha professôra formada em musica” (Rollemberg In: Albuquerque, 2005, p. 67).

Na companhia da museóloga Ana Karina Rocha de Oliveira, especialista em coleções têxteis, examinei detidamente a veste em estudo, uma “túnica de veludo na cor roxa, manga comprida, decote em V acentuado, gola clerical e forrada com tafetá róseo em toda a sua extensão”. Entre os detalhes alcançados pelo experiente olhar da museóloga, chamaram a minha atenção os finíssimos elementos fitomorfos (flores e folhas) confeccionados em fita dourada que decora a gola, as mangas e a barra da peça. Contudo, outros elementos decorativos, como “estrelas bordadas em alto relevo com fio dourado e lantejoulas” (dispostas indiscriminadamente em toda a peça), foram aplicados à túnica ao longo dos anos em que ela foi usada nas procissões quaresmais, nublando a sua originalidade.

Em suma, baseado nos testemunhos históricos e no parecer técnico citado, aposto minhas fichas na hipótese de que a túnica do Senhor dos Passos, supostamente doada pelo Barão de Maruim, foi confeccionada no Rio de Janeiro, por uma modista francesa da Rua do Ouvidor, sob encomenda, na verdade, do Barão da Estância.

Mas, seja como for, é provável que os sentimentos que moveram a ação do devoto brasonado assemelhem-se aos que movem os milhares de romeiros que, no segundo domingo da Quaresma, tomam as ruas da antiga capital de Sergipe, renovando a sua fé, dando conta das graças alcançadas e pedindo a benção do Senhor que, certamente, não dissocia a luxuosa túnica de veludo da ordinária túnica cetim atirada sobre sua imagem ao final da Procissão do Encontro. (Fim)
 


*Publicado no JORNAL DA CIDADE. Aracaju, 27 e 28 de abril de 2014, p. 11.
**Professor da UFS e presidente do IHGSE. E-mail: samuel@ihgse.org.br

FONTES UTILIZADAS:
OLIVEIRA, Ana Karina Rocha de. “Descrição da ‘Túnica do século XIX doada pelo Barão de Maruim’, peça da exposição ‘Nos Passos do Senhor dos Passos’, aberta ao público em 8 de março de 2014, no Museu de Arte Sacra de São Cristóvão – MASC”. Aracaju, 30 mar. 2014 (Arquivo/Biblioteca Samuel Albuquerque).
ROLLEMBERG, Aurélia Dias. O documento. In: ALBUQUERQUE, Samuel Barros de Medeiros. “Memórias de Dona Sinhá”. Aracaju: Typografia Editorial, 2005. p. 47-123.
SANTOS, Magno Francisco de Jesus. Os últimos passos de uma devoção: indícios da religiosidade de um nobre sergipano oitocentista. “Historien – Revista de História”, Petrolina, v. 3, p. 149-167, 2010.
SANTOS, Magno Francisco de Jesus. Os sete passos da Paixão: patrimônio e memórias na romaria do Senhor dos Passos de Sergipe. “Anais do Congresso Internacional de História e Patrimônio Cultural”. Terezina: 2012. p. 1-13.
SANTOS, Magno Francisco de Jesus. Depoimento concedido ao autor. Aracaju, 31 de outubro de 2012.
TESTAMENTO do Barão da Estância. São Cristóvão, 1904. Arquivo Geral do Judiciário, fundo São Cristóvão/Cartório do 1º Ofício, caixa 11, número geral 77.

THE BAGGIOS É PRA ENLOUQUECER!

José Silval, Baggio, inspirou a banda


Thiago Fragata*


Serafim Santiago viveu em São Cristóvão na segunda metade do século XIX, ele escreveu a vida, fatos e nomes da cidade no início do século XX, produzindo um texto de memórias vertido em livro (2009) por ser uma referência dos pesquisadores, a mais conhecida, não a única. Bom, estou exercitando na leitura de algumas composições de Julio Andrade o retrato e memória da sua cidade/infância. Ironicamente, escreve no início do século XXI.

Quero me deter em 3 personas do universo poético das letras que embalam o rock-blues da The Baggios, banda que completa 10 anos de sucesso, 3 indivíduos incompreendidos pela sociedade que os classificaram loucos. Assim como Julio Andrade também deparei-me com os caras pirados, um mais tranquilo, outro agitado, um terceiro agressivo, colocando garotada pra correr de botar coração pela boca...

BAGGIO - Conheci nos anos de 1980, ele tem uma irmã casado com meu tio Fernando. Lembro que o esforço de todos os familiares para compreendê-lo naquela época era chamá-lo Raul Seixas. Ela tocava violão divinamente, filosofava no meio dos jovens da Avenida, bairro onde morava e passei parte da minha infância. Das tiradas memoráveis, lembro dele comprando cigarro no retalho, custava algo como 2 cruzeiros, ele pechinchava "vou fumar 1 cruzeiro porque a biana jogarei fora!" Outro dia dediquei uns parágrafos a ele num texto chamado "Bispo & Baggio: yes, nós temos maluco beleza".

LEÃO - O mais temido doido da infância. Ele andava com um saco nas costas, sujo, cabelo e barba negros enlameados, alvoroçados e armados como uma juba. Mas não era isso que fazia a garotada apupar a certa distância "esturra Leão". Quando não mais suportava o apelido, na sua perturbação, reagia a incitação, rugia grotescamente, sacudindo os braços, saltando e correndo na direção dos pestinhas. Eu até juntava com a galera mas faltava coragem de gritar "esturra Leão", o que num faltava era perna pra correr, pé para bater na bunda!

ZORRÃO - Também andava com um saco, era seu guarda-tudo, roupa e alimentos. Era educado alguns dias, cumprimentava; outros falava uma língua estranha que só ele entendia - ou parecia entender. O fato era que por cantar e ser um tanto educado e até asseado alguns dias conquistava amigos que recebia ele em casa. Ele tomava café na casa de fulano, almoçava na casa de beltrano, jantava na casa de sicrano, dormia... num sei onde! Lembro dele cantando e dançando no meio da praça; fazia bateria, trompete, percussão, tirando toda sinfonia do corpo. Hoje classificaria seu idioma de javanês! 

Eis o trio maluco-beleza da nossa juventude, Julio Andrade. Gostei muito do "Esturra Leão" e "Um rock para Zorrão" incluso no Sina (2013), último disco do The Baggios. Para não perder o trocadilho, espero que a banda possa deixar todo mundo "aperreado" no próximo sábado, 19/4, no show de gravação do DVD, no teatro Atheneu em Aracaju.


Divulgação


* Thiago Fragata é poeta e historiador. Email: thiagofragata@gmail.com

A TÚNICA (II)*

Antonio Dias Coelho e Mello (1822-1904), Barão da Estância, déc. 1880 (Acervo do IHGSE)



Samuel Albuquerque**

Na semana passada, iniciei um ensaio de crítica histórica, questionando a origem de uma túnica oitocentista apresentada na exposição temporária “Nos passos do Senhor dos Passos”, aberta ao público no último dia 8 de março, no Museu de Arte Sacra de São Cristóvão. Baseado na historiografia sergipana e na memorialística cristovense, demonstrei a fragilidade da hipótese que relaciona a doação daquela peça ao nome de João Gomes de Melo, o Barão de Maruim (1809-1890).

Considero provável que uma “armadilha da memória” tenha vinculado ao nome do mais afamado barão sergipano uma ação que, possivelmente, está ligada ao já mencionado Barão da Estância, político cujo nome é pouco lembrado pela historiografia e não batiza ruas ou avenidas importantes em Aracaju ou São Cristóvão.

O Barão da Estância, além de residir no município (o seu Engenho Escurial, localizado na ribeira do Vaza-Barris, ficava à cerca de duas léguas da sede municipal) e possuir casa em São Cristóvão (ocupada por sua família, principalmente, em datas assinaladas do calendário católico) era um dos membros mais ativos da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, grupo diretamente envolvido nas celebrações ao Senhor dos Passos.

Rememorando os meados da década de 1870, o “Annuario Christovense” destaca o Barão da Estância entre os terceiros de Nossa Senhora do Carmo ao descrever, por exemplo, a Procissão do Depósito (também conhecida como da Transladação ou do Encerro), realizada na noite do segundo sábado da Quaresma, durante os atos votivos ao Senhor dos Passos. Segundo Serafim Santiago,

“(...) Via-se ao pé da charola, aguardando o momento da sahida, o Presidente da Provincia com seu estado-maior, Barão da Estancia, Commendador Sebastião Gaspar de Almeida Botto, Coronel Jozé Guilherme da Silveira Telles, Coronel Domingos Dias Coêlho Mello, Dr Silvio Anacleto de Souza Bastos, Dr Simões de Mello e muitissimos outros abastados proprietarios do Vasa-barris, antigos devotos da respeitavel Imagem do Senhor dos Passos” (Santiago, 2009, p. 182).

Ao tratar da igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, templo que abriga a imagem do Senhor dos Passos, a anuário registra: “Este antigo Templo foi ultimamente retocado as espensas do Exmo Sen “Barão da Estancia no anno de 1898, cumprindo elle um voto antigo que havia feito ao mesmo Bom Jesus dos Passos, fasendo na conclusão da obra, celebrar-se uma pompoza festa, comparecendo n’aquella Cidade, a convite do mesmo senhor “Barão da Estancia, o Exmo Senr. Governador do Estado Dr Daniel Campos e sua comitiva, a musica do Corpo de Policia, grande multidão de pessôas desta Capital, Itaporanga, Larangeiras e das mais vizinhas” (Santiago, 2009, p. 73).

O célebre jurista Gumersindo Bessa (1859-1913), nos “retalhos” (textos esparsos veiculados pela imprensa sergipana) que foram reunidos e publicados, postumamente, na obra “Pela imprensa e pelo fôro” (1916), deixou seu testemunho sobre o papel de destaque ocupado pelo Barão da Estância nos atos em homenagem ao Senhor dos Passos. Referindo-se à Procissão do Depósito realizada no segundo sábado da Quaresma do ano de 1886, registrou Bessa:

Vi ao pé da charola, numa posição indescriptivel de fidalgo e penitente, um velho esguio, alto, aprumado, moreno, barba branca cerrada e curta, cabelleira rebelde, trajado com elegancia e modestia, silencioso, immovel, aguardando a sahida da procissão naquelle posto, para que ninguem lhe roubasse o goso depôr aos hombros um dos varaes do andor. (...) No mesmo instante entram na igreja o Manuel Góes, presidente da provincia, o Rastelli, juiz de direito da comarca, e o Oséas, secretario do governo.
E, vão entrando e vão dizendo:
– Sr. ‘Senador’, – diz o Góes.
– ‘Sr. Barão’, diz o Rastelli.
– ‘Meu chefe’, diz o Oséas.
Então o vulto immovel falou. Palavra imprecisa, hesitante, acanhada; mas com tal timbre de dignidade e affirmação de si, que se sentia uma alma nobre alli dentro e um homem incapaz de uma falsidade.
Isto passou.
O velho Barão da Estância descança em Deus, abençoado pelos que tiveram o prazer de ser seus amigos(Bessa, 1916, p. 74-75).

Em concordância com os registros legados por Serafim Santiago e Gumersindo Bessa, estão o texto de memórias de Aurélia Dias Rollemberg (1863-1952), filha do Barão da Estância e de dona Lourença de Almeida Dias Mello (1848-1890); e o testamento do próprio Barão da Estância, aberto em 1904, em sua casa de residência na cidade de São Cristóvão. Daremos voz a esses testemunhos no terceiro e último artigo desta série. (Continua)

*Artigo publicado Jornal da Cidade. Aracaju, 13 e 14/4/2014 (caderno B, página 5).
**Samuel Albuquerque é Professor da UFS e presidente do IHGSE. E-mail: samuel@ihgse.org.br

FONTES UTILIZADAS:
BESSA, Gumersindo. “Pela imprensa e pelo fôro”. Aracaju: Imprensa Popular, 1916.
SANTIAGO, Serafim. “Annuario Christovense ou Cidade de São Christovão”. São Cristóvão: Editora UFS, 2009.

MERO DA SOMBRA DA PEDRA

Exemplar da espécie: mero Thiago Fragata*  Esse texto desvela uma lenda de São Cristóvão que registrei há alguns anos, nas pesquisas de c...