TEXTOS DA RODA DE LEITURA: MESTRE CALASANS E A CACHAÇA DO FOLCLORE

José Calasans Brandão da Silva
(1915-2001)

Um clássico do cancioneiro da cachaça foi publicado por José Calasans em 1942. O pesquisador recolheu versos no mercado de Aracaju, nas feiras do interior sergipano, e contou com a colaboração de Marcos Ferreira, Pedro Moreno, Flávio Aquino, José Sampaio, Otávio Aragão, Andrade Sucupira e Garcia Moreno. Neste ano completa 10 anos da morte do Mestre Calasans daí a justa homenagem da Roda de Leitura que convidou Irineu Fontes, Secretário de Cultura de Laranjeiras, sobrinho do falecido.


RECOLHA DE VERSOS POPULARES DA CACHAÇA


Já comi e já bebi

Já molhei minha garganta

Eu sou como o rouxinol

Quando bebe, logo canta...


Cachaça, fia da cana

Neta do canaviá

Quem bebe muita cachaça

Canta que nem sabiá


Cachaça, fia da cana

Neta do canaviá

Quem se mete muito nela

Oh! Não vá se embriagá


Cachaça, fia da cana

Neta do canaviá

Ela bate comigo aqui

Eu bato com ela acolá


Cachaça, fia da cana

Neta do canaviá

Quem se empurra muito nela

Nalguma coisa é de dá.


Cachaça, fia da cana

Neta do veia mutamba

Quando bebo essa cachaça

Minhas pernas fica bamba.


Cachaça, fia da cana

Neta da cana torta

Quem muito se mete nela

Fala o que não se importa


Cachaça, fia da cana

Neta da cana Tiburço

Ela dá comigo no chão

Eu dou com ela no bucho.


Cachaça é fia

Cana caiana

Eu bato com ela na barriga

Ela bate comigo na cama.


Cachaça, fia da cana

Neta do veio Paixão

Eu meto ela no bucho

Ela me mete no chão.


Da garrafa quero a vela

Da pipa quero o caixão

Mesmo depois de morto

Me bote o copo na mão


Quando eu morrer, minha gente

Quero que um favor me faça

Botem dentro do caixão

Vinte litros de cachaça.


Dentro do alambique

Quero minha sepultura

Porque mesmo depois de morto

Quero viver na fartura.


Aguardente é como a morte

Não respeita a qualidade

Não conhece velho ou moço

Nem home de autoridade

Doutores, frades e padres

Quem bebem cachaça forte

Abasta beber dois gorpes

Mudam a vista de repente

Podem todos ficar ciente

Que aguardente é como a morte

FONTE: CALASANS, José. Aspectos folclóricos da cachaça. Revista do Aracaju. Aracaju, n. 1, 1942, p. 89-107. OBS: versos foram lidos por Thiago Fragata.



Clodomir Silva
1892-1932

O Quartel de Linha que existiu em São Cristóvão até a segunda metade do século XIX deixou algumas estórias da caserna. CLODOMIR SILVA, no seu livro Minha Gente: costumes de Sergipe, de 1926, escreveu o seguinte:

POR AMOR DE DONA ÚRSULA

Pelo vale do Paramopama, que a água das marés cheias inundava copiosamente, reboava, a todas quartas-feiras, como uma nota clara de alegria, o som vibrante do sino do S. Francisco, forte e imponente, chamando os fiéis da beata São Cristóvão às missas cantadas de Nossa Senhora da Glória, missas que constituíam o enlevo de quanta gente beata povoava a sede da Freguesia de Nossa Senhora da Vitória de Sergipe del’Rey. Depois das festas do Papa-Vento, com as suas comédias, seus reisados, e a lauta comedoria.

Era, a esse tempo, a cidade denominada pelo Sr. Padre Barroso, então ao auge de seu prestigio político, a que fazia mão forte o preto velho Basílio, cuja pensativa figura ocupava lugar á mesa do lado do saudoso político e tribuno.

Comandava o batalhão de linha ali estacionado certo major de quem falava com desairosas palavras a gentalha insidiosa da rua do quartel.

Era esse comandante um militar pouco afeito á piedade e á condescendência com os seus subalternos, motivo por que temiam em vez de respeitá-lo.

Velhote de baixa estatura, grosso, feição achamboada, denotando vestígios recentes do indígena, comandou por muito tempo forças gerais da província.

Conta-se que era dos seus moldes de espancar os soldados, por questões de nonada, a fim de que estes, não suportando mais as freqüentes surras, desertassem, como que não poderia mais receber a prestação devida pelo segundo semestre, parte restante da que cabia aos que se engajam aos serviços do Exercito.

De determinada feita sabe-se o seguinte:

Era uma tarde límpida do verão.

Restava, dos últimos contratados, um que, não obstante as surras continuadas, permanecia ainda no corpo.

Havia precisão de que ele fugisse aos maus tratos, e por isso aos toques estridentes das cornetas e aos rufos dos tambores, formou-se o quadrado, ao pátio do quartel. Vieram os feixes de varas de mangue (madeira preferida para estes bárbaros castigos) e o medico compareceu para avaliar da saúde do suplicado.

O corneteiro designado para o carrasco sofreu a varancada do estilo para aferir por essas as que tivesse de vibrar.

O contratado gritou muito; o medico examinou-lhe o pulso e assegurou que ainda suportava 50.

Novos golpes e mais lamentos brados.

Esgotado o numero permitido, o medico afirmava que ainda seriam toleradas 30.

A essa altura, porém, o flagelado entrou de tocar o sentimento religioso do comandante, e invocou a égide protetora de Senhor dos Passos.

- Dá-lhe, corneta, exclamou o major:

- Pelo Senhor dos Aflitos, meu comandante!

- Dá-lhe corneta.

- Por Nossa Senhora da Vitoria, que não aguento mais.

- Bate, corneta! E o pau caia cadenciado ás costas do infeliz.

- Ai, seu comandante.

- Deserta, pelintra, si não quer apanhar.

- Por tudo que é santo, meu comandante.

- Dá-lhe.

- Seu majó, pelo amor de Dona Úrsula!

- Basta, corneta, basta!...

D. Úrsula era a amasia do comandante!...


FONTE: SILVA, Clodomir. Minha Gente: costumes de Sergipe. 1926,

OBS: texto POR AMOR DE DONA ÚRSULA foi lido pela poetisa Maria Rita Santos.





Severiano Cardoso
1840-1907

A lenda de Rita Cacete foi publicada por Severiano Cardoso, no jornal “O Estado de Sergipe”, de 13/3/1904:

“É crença popular que no tempo da invasão dos holandeses uma pobre forasteira procurou alívio para suas infelicidades na plaga cristovense. Era, porém, vista entre os próprios colonos portugueses como bruxa ou feiticeira. Tendo uma filha, que era um primor de formosura, saía a esmolar para ela, pelos arredores, arrimada a um bordão, por quase já não poder andar.

Os garotos apupavam-na e enxotavam-na exclamando: daí-te daí, Rita Cacete, fazendo alusão à vara nedosa em que se agüentavam para andar. Ela refugiou-se para o lado das Pedrinhas, e, um dia, adoeceu sua linda e interessante filha. Apareceu-lhe a Mãe d’Água, e disse-lhe compungida do estado da jovem enferma: - Eu curarei tua filha! Anda comigo.

Andaram, e chegando à beira de uma emsombrada por uma árvore secular, a Mãe d’Água falou: - Imerge-a.

A velhinha obedeceu, e de repente a fonte cobriu-se de alvíssima fumaça. Depois do banho a moça ficou inteiramente curada e voltou-lhe a primitiva beleza em todo seu frescor primaveril. Descobriu-se então a virtude da fonte, aonde entre fumaça, hoje azulada, um bom gênio derrama sobre os que a procuram a benção da saúde.

OBS: a LENDA DE RITA CACETE foi lida por Silene Lazarito.


Manoel dos Passos de Oliveira Telles
1859-1935

A primeira biografia de João Bebe-Água foi publicada em Sergipenses, obra de Manuel dos Passos de Oliveira Telles, de 1896:


BEBE-ÁGUA

“Conheci já nos últimos tempos de sua peregrinação pela terra.

Não se poderá dizer que era um arquétipo pelo contraste das suas maneiras e popularização do seu viver na sociedade, que fatalmente arrastasse para seu nome uma celebridade qualquer. Mas havia nele uma complexidade de coisas que destoavam da medida comum a par de outras que não infringiam o modo de encarar ordinário. Em todo caso o que pensava era seu, o que sentia era seu, como sua era a casa que habitava, como ainda seu era o mistério da sua vida. Parecia incompreensível, não porque a natureza o tivesse preparado para tortura da inteligência de outrem, antes por hábito, por uma reconhecida indolência de todos os dias. Os homens incompreensíveis não andam longe dos homens originais, pois que a esses o talento de serem tais não carece de uma faculdade de ocultação; um homem incompreensível ou original é um homem que se esconde, que invencivelmente foge, que involuntariamente recua à perspicácia dos seus semelhantes, de modo a despertar impressões múltiplas – do trágico, do cômico, até mesmo do baixo ridículo. Pede-se amá-los, odiá-los, invejá-los, conforme os diferentes matizes da luta pelo descobrimento deles. Por isso é que digo, parecia incompreensível; e era mesmo um até certo ponto, não passando, entretanto em outras muitas exposições de si mesmo de figura conhecida, mas não familiar ou íntima, que atraia atenções e feria olhares. Se tivesse vivido em um grande meio, talvez não conseguisse, nem mesmo o renome de um tipo de rua, daqueles tão indelevelmente gravados em belas silhuetas pelo Dr. Mello Moraes Filho. Mas filho de uma cidade pequena, indo até o fim da vida dentro de um meio social que cada vez mais se contrai, os choques dos seus atos e das suas paixões foram capazes de transbordamentos que por força ficaram notados.

Eu mesmo às vezes deixava de o observar para admirá-lo e dou as razões.

Habituado a ver, não raro com insistência, aborrecida, um patriotismo, nominal exclusivamente de boca, incômodo desse ardor patriótico que supra de todos os pontos.

Ia verificando, e tenho assentado que essas suras trazem muita poeira, que, todavia não é tão densa e conturbadora, que possa esconder a classe pequena e nobre dos verdadeiros patriotas, que, segundo lemos o que se deve concluir de Tobias Barreto, divide-se em patriotas loucos e patriotas mendigos, a quem ampara no fim dos dias a piedade e aguarda o hospital.

João Bebe-Água soube ser patriota de coração, que viveu e morreu isento dessa condenação do destino: não foi um louco, não foi um mendigo, era um resignado.

Daí as oportunidades da minha admiração.

Como é que um indivíduo tão antigo, de longa data expectador, sendo vezeiro nas tricas politiqueiras, era assim patriota? Como é que amava sua terra com uma sinceridade de herói, sem certo interesse sinistro tanto em voga?

Refletia para agir; não falava para recuar. A mudança da capital o abalou, inveterou-lhe uma nota melancólica que jamais o abandonou. Todos sabem que se dispôs a reação; até chegou a organizar uma leva de 400 homens armados, que formaram na praça da matriz. Mas o nosso herói andara em má hora, pois em breve viu-se reduzido a sua bravura unicamente. Então concentrou-se mas não desesperou.

Como Billot jurando vingança sobre a sepultura da esposa, sobre os destroços da supremacia administrativa da pátria, não prorrompeu em odiosidade tonitruantes, sendo sua vingança a mais cruel e terrível, somente comparável ao verbo de Cambrone. Cuspia todos os seus desprezos sobre a cidade nova; protestou que seus pés não pisariam nunca as suas areias e de fato morreu sem ver Aracaju.

Então logo ao redor dele formaram-se as crônicas e tradições. Uns diziam que tinha foguetes guardados para espocá-los na volta da capital; outros que de uma feita caladamente, viera até o alto Borborema, e diferentemente de Cezar, veio, viu e... Voltou. De outra vez, o sino do Amparo dobra a finados – Quem foi? – Os deputados provinciais, acudiu pronto o Bebe-Água; morreram todos, dobrei por suas almas, porque não quiseram fazer voltar a capital.

Por diferentes vezes exerceu cargos de eleição popular com energia e sisudez. Foi o único voto para Senador, que o Dr. Tobias Barreto teve em São Cristóvão quando os estudantes do Recife o recomendaram as urnas.

Foi no fim de contas um cidadão honesto que conseguiu aderir à memória dos seus patrícios pelo seu entranhado amor a sua terra. O futuro lhe fará justiça. 1895.

FONTE: OLIVEIRA TELLES, Manuel dos Passos de. Sergipenses. 1896. Texto JOÃO BEBE-ÁGUA foi lido por Eliene Marcelo Santos.


Sílvio Romero
1851-1914

Estória recolhida por Sílvio Romero no interior de Sergipe e inserida na obra Estudos sobre a poesia popular do Brasil, de 1888:

A ONÇA E O BODE

Uma vez a onça quis fazer uma casa; foi a um lugar, roçou o mato para ali fazer a sua casa. O bode que também andava com vontade de fazer uma casa, foi procurar um lugar, e, chegando no que a onça tinha roçado, disse: “Bravo! Que belo lugar para levantar minha casa!” O bode cortou logo umas forquilhas e infincou naquele lugar, e infincadas, disse: Oh! Quem está me ajudando?! Bravo, é Deus que está me ajudando?!” Botou logo travessas nas forquilhas e a cumeeira, e foi-se.

Vindo a onça, ainda mais se espantou e botou as ripas e os enchimentos e retirou-se. O bode veio e envarou a casa, e foi-se. A onça veio e cobriu. O bode veio e tapou. Assim, foram, cada uma por sua vez e aprontaram a casa. Acabada ela, veio a onça, fez a sua cama e meteu-se dentro.

Logo depois chegou o bode, e, vendo a outra, disse: “Não amiga, esta casa é minha, porque fui eu quem infinquei as forquilhas, botei os caibros, envarei e tapei..” Não amigo, respondeu a onça, a casa é minha, porque fui eu que rocei o lugar, botei as travessas, a cumeeira, as ripas, os enchimentos e o sapé.

Depois de alguma questão, a onça que estava com vontade de comer o bode, disse: “Mas não haja briga, amigo bode, nós dois podemos ficar morando na casa”. O bode aceitou, mas com muito medo. O bode armou a sua rede bem longe do jirau da onça. No outro dia a onça disse: “Amigo bode, quando você me ver frangir o couro da testa, eu estou com raiva, tome sentido!”. “E eu, amiga onça, quando você mim ver balançar as minhas barbinhas ali nas goteiras e dar um espirro, você fuja, fuja que eu não estou de caçoada!”. Depois a onça saiu, dizendo que ia buscar de comer. Lá, por longe de casa, pegou um grande bode, para fazer medo ao seu companheiro, matou-o e entrou com ele pela casa adentro. Atirou-o no chão e disse: “Está, amigo bode, esfole e trate para nós comer”. O bode, quando viu aquilo, disse lá consigo: “quando este que era tão grande, você matou, quanto mais a mim!” No outro dia ele disse a onça: “Agora, amiga onça, quem vai buscar o que comer sou eu”.

E largou-se. Chegando longe, avistou uma onça bem grande e gorda, disfarçou e pôs-se a tirar cipós no mato. A onça veio chegando e, vendo aquilo, disse: “Amigo bode, para quê tanto cipó?” Para quê?! O negócio é sério... o mundo está pra se acabar, e é com um dilúvio...” “O que está dizendo, amigo bode?” “É verdade; e você, se quiser escapar, venha se amarrar, que eu já me vou”. A onça foi e escolheu um pau bem alto e grosso, e pediu ao bode para que a amarrasse. O bode enlinhou-a perfeitamente, e, quando a viu bem segura, meteu-lhe o cacete como terra, até matá-la. Depois arrastou-a, chegou em casa, largou-a no chão, dizendo: “Está, se quiser, esfole e trate!”.

A onça ficou espantada e com medo, ambos temiam um ao outro. Num dia o bode pôs-se junto das biqueiras, tomando fresco; olhou para onça, e ela estava com o couro da testa frangido. Ele teve receio e abalou as barbas e largou um espirro. A onça pulou no mundo e largou na carreira. O bode também abriu o pano. Ainda hoje correm, cada um para o seu lado.

FONTE: SÍLVIO ROMERO. Estudos sobre a poesia popular do Brasil. 2ª. Ed. Rio de Janeiro/Sergipe: Ed. Vozes Ltda, 1977, (1ª. Ed. 1888). A estória A ONÇA E O BODE foi lida pela poetisa Maria Gloria Santos.



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